Passeata dos 100 mil

Passeata dos 100 mil

Demorei na decisão de comentar o livro de Sérgio C. Buarque, “Geração D”, lançado há pouco, e agora busco a remissão do pecado, com explicações e pedido de desculpas: o título, um tanto enigmático, não me pareceu feliz, e a edição, também seu tanto apressada, veio com muitos erros de revisão. Aliás, o livro, que ele já vinha escrevendo há vários anos silenciosamente, foi mandado imprimir por seus parentes, sem a sua participação. E o lançamento, por iniciativa dos amigos, ocorreu em um restaurante da cidade do Recife, sem festa nem convites.

E apesar de tudo isso, meu amigo, com seu estilo reservado e modesto, produziu, em mais de quinhentas páginas, uma verdadeira epopeia da juventude rebelada romanticamente contra a ditadura militar dos anos 1964 a 1985, que assolou nosso país por tantos anos. Ele próprio foi um desses jovens, e pagou seu preço de prisão e exílio. Mas optou por não dar seu depoimento pessoal, recorrendo à ficção, para atribuir maior abrangência à sua aventura geracional. Seus personagens não são reais, mas são rigorosamente verossímeis, espelhando todas as opções de vida dos que sobreviveram à repressão dos usurpadores do poder.

Li numerosos depoimentos dos que se deixaram levar, quixotescamente, pela voragem da luta armada contra a ditadura: Gabeira, Alfredo Sirkis, Carlos Eugênio Paz e tantos outros. E até de veteranos como Jacob Gorender e Paulo Cavalcanti (este, como velho quadro do PCB, sempre contrário à opção pelas armas). Os casos mais chocantes são o de Carlos Eugênio Paz – ligado à ALN de Marighela ainda adolescente, prestando serviço militar a conselho deste, desertando em seguida, e tendo a sorte de sobreviver sem ser preso – e os de Mário Alves e Eduardo Leite, o Bacuri, assassinados da forma mais brutal e degradante que se pode imaginar. C. E. Paz, o sobrevivente, teve que se tratar com psiquiatras, para aprumar a cabeça e assumir seu passado de luta inglória, que envolveu, entre outras ações, a execução de Henning von Boilesen, o organizador e financiador da tenebrosa Operação Bandeirantes.

Todos, porém, falam apenas de suas ações e do seu entorno. E não poderia ser diferente, em se tratando de memórias. Sérgio, no entanto, indo além dos seus dramas pessoais, vale-se da ficção, e engloba as diferentes vivências dos “carbonários”, ou “combatentes das trevas”, nas lutas, na derrota, e na eventual reconciliação dos que sobreviveram com a nossa vida comum de simples mortais. O resultado, aparentemente paradoxal, é o de que temos a ficção superando a realidade.

No livro, todas as crenças, inquietações e conflitos desses combatentes, cujo heroísmo não se pode contestar, são objeto de especulação.  Há o caso da militante que, designada para seduzir um ministro da ditadura e levá-lo ao sequestro para ser trocado por companheiros presos, apaixona-se pela vítima e frustra a operação.  Há o remorso invencível dos que, não suportando as torturas, “entregaram” os parceiros.  Há os emigrados que, esperando encontrar em Cuba a sociedade idealizada de justiça, igualdade e liberdade, se frustram.  Há, enfim, os que, ingenuamente, tentam renunciar à “sociedade capitalista” vivendo ao lado dela, como “hippies”, ou os que, simplesmente, fogem da vida que não se conforma aos seus sonhos, pela opção radical do suicídio.

Mas que reflexões o livro de Sérgio nos provoca?  Os sobreviventes da longa noite de sombras devem ter a humildade de admitir que o velho PCB, o “Partidão” tantas vezes vilipendiado por sua suposta passividade, é que estava certo.  A ditadura brasileira não foi derrubada, como apregoavam e propunham, foi derrotada, por uma conjunção de fatores, envolvendo a conjuntura internacional, um paciente trabalho de “costura” política entre esquerdistas, liberais e conservadores moderados, e até mesmo algo que, recorrendo a uma metáfora da engenharia, poderíamos chamar de “fadiga dos materiais”. As ditaduras não são eternas, nunca foram.

E quanto a nós outros, que nos acomodamos para viver a tal noite, postergando ou relativizando nossos sonhos e projetos de uma sociedade mais justa e igualitária?  Com a devida reverência aos jovens que se imolaram pela sua causa, não podemos simplesmente entender que só nos cabe agora, na expressão de Voltaire, “cultivar o nosso jardim”.  Vivemos recentemente o risco de implantação de uma nova ditadura, ainda mais grotesca e brutal, afortunadamente afastado, em grande parte, pela resiliência das cúpulas militares.  E a possibilidade de uma recidiva está em aberto. Precisamos, pois, estar alertas, agindo no limite das nossas circunstâncias, com os recursos da democracia, e resistindo ao ceticismo expresso por Sérgio, com rara felicidade, pela boca de um dos seus personagens desencantados: “O cinismo é uma armadura protetora dos sentimentos.  E o humor…um desvio valioso da desesperança”.