“Não seria a ironia uma das faces da sabedoria?”, pergunta-se retoricamente o filósofo francês Vladimir Jankelevitch no seu clássico “L’ironie”. Bem, se não é exatamente uma das faces da sabedoria, a ironia, pelo menos, nos incita a ser mais sábios e mais reflexivos. E o território da literatura, desde os primórdios da Era Moderna, é dos mais férteis para o exercício da ironia. Que o digam as viagens do bom Gulliver. Já Baudelaire, pioneiro da modernidade, preconizava a autoironia como condição para se ser um poeta moderno. O tema é farto e contemporâneo, e aqui o tocamos para tratar, ainda que sumariamente, do último romance do premiado autor francês Michel Houellebecq. Refiro-me a “Serotonina”. Título que é por si só uma deliciosa provocação ao nosso tempo, marcado pela depressão e pela excessiva medicalização da saúde.
À certa altura do romance, o próprio narrador e protagonista nos explica, não sem ironia e alguma derrisão, que “[…] a serotonina é um hormônio ligado à autoestima, ao reconhecimento obtido dentro do grupo. Por outro lado, é produzido essencialmente no nível do intestino e se observa sua presença em inúmeras espécies vivas, incluindo as amebas. Que autoestima podiam ter as amebas? Que reconhecimento dentro do grupo? A conclusão a que pouco a pouco se chega é que a ciência médica continua confusa e aproximativa nessas questões, e que os antidepressivos fazem parte do numeroso grupo de medicamentos que funcionam (ou não) sem que se saiba exatamente por quê”.
O romance que temos pela frente é a recordação de uma vida — a do solitário e depressivo Florent-Claude Labrouste — que praticamente está dimensionada pelos pilares da citação acima: autoestima, reconhecimento social, medicalização. Esta última problematizada como uma sombra que atravessa a obra. Com certeza, como nota a personagem, é preciso o mínimo de prazer para todo dia nos levantarmos da cama. Sem esse mínimo, nos reduziríamos a um estado larvar e sombrio. Para muitas pessoas, como o próprio Florent-Claude, isso só é possível graças à tecnologia farmacêutica.
O personagem, de meia-idade, é usuário do Captorix, um antidepressivo de última geração (seria o nome uma alusão à poção mágica de Asterix?), cujo efeito secundário mais sensível é a impotência e o desaparecimento da libido, como faz questão de registrar o “herói” houellebecquiano. Neste passo, há um giro temático tão natural quanto romanesco: o aproveitamento pelo romancista da perda da virilidade justamente para falar abertamente do desejo masculino da forma mais crua e politicamente incorreta. O romance também é uma memória do desejo. Heterossexual, o “herói” repassa a sua vida amorosa, com ênfase no que lhe escapa e, paradoxalmente, se podemos dizer assim, com não menor ênfase, no que sexualmente pôde desfrutar. Mas, como observado por um moralista francês (La Bruyère? La Rochefoucauld?), ele também “confessa haver um dia amado”. Para o romancista, a felicidade só pode ser apreendida pelo negativo; só a sua perda pode anunciá-la, e este é o drama schopenhaueriano de Florent-Claude, cuja vida vai assumindo ares cada vez mais cinzentos e frios.
Houellebecq (e aqui não vai qualquer novidade) sempre sobe o tom e se engrandece ao explorar e questionar as dilacerações, os excessos e as fissuras da sociedade contemporânea. Por mais prazer e liberdade que tenhamos, por mais perversões que criemos, continuamos presos a uma condição que nenhum produto farmacêutico vai ajudar profundamente a resolver. De resto, o puro prazer carnal, assim como as fantasias metafísicas e sentimentais, não nos livra da solidão mais radical, da tristeza das perdas e do próprio e estranho amor pelas ruínas. Assim, precisamos e não precisamos de serotonina e de Captorix. Enfim, como a personagem principal de “Viagem ao fim da noite”, de Céline, Florent-Claude também está em viagem, em busca, e, nessa busca, observa com devastadora melancolia o nosso estar no mundo: “[…] decididamente não se pode fazer nada em relação à vida das pessoas, pensava, nem a amizade, nem a compaixão, nem a psicologia, nem a compreensão das situações têm a menor utilidade, as pessoas constroem sozinhas a engrenagem da própria desgraça […]”. Polêmico? Falso? Terrível? Mas isso é puro Houellebecq…
“Serotonina” é uma deliciosa overdose de ironia. É evidente que a perda da libido é um desequilíbrio e um alto preço para se suportar a vida. Por isso, para concluir, volto ao filósofo Jankelevitch, citado no início desta resenha: “A ironia nos dá o meio de nunca estar desencantado, isso pela boa razão de que ela também se recusa ao encantamento […] Ela é como um inspetor de polícia que quer ter seu prisioneiro vivo e que lhe prolongaria a vida para dele saber ainda mais”. É o que Houellebecq faz com maestria e é o que nos encanta em suas obras.
Claro que a sua apreciação me deixa curiosa. Gostei de ler sua resenha/crônica. Mas acho que, dada a pilha de livros que estão na frente deste, não chego lá. E sobre Rivotril, prefiro relatórios médicos. Li um livro de Houellebecq há bem mais de 10 anos, “La possilité d’une île”, e lembro que me horrorizou, me deu a sensação de provocação artificiosa, “pour épater les bourgeois”, só mesmo para chocar com exagero máximo, tudo sempre à enésima potência, e desde então me desinteressei da celebridade. Li resenhas de um que é uma fantasia distópica sobre dominação muçulmana da França, ou algo assim, e, de novo, confirmou minha sensação de artificial. Não sei se ilumina algo de imigração na França. Vai ver não tenho competência para destilar ironia. E lembro ainda, da época, de umas coisas horrorosas que ele falou da mãe ou a mãe falou dele, já não lembro qual é qual. Mas insisto: foi bom ler sua resenha, assim já não preciso ler o livro.