No dia 27 de agosto último completaram-se 21 anos da morte de dom Hélder Câmara, um religioso controverso e mirrado, que por anos ocupou a Arquidiocese de Olinda e Recife, contra a vontade dos militares que ocupavam o poder, dos grupos de direita que se escondiam no anonimato para praticar atos de terrorismo, da ala conservadora do Vaticano, à frente o Cardeal Joseph Ratzinger, que depois seria eleito Papa Bento XVI e que se colocava frontalmente contra a Teoria da Libertação. Dom Hélder já desembarcou em Pernambuco sob o signo da polêmica, com parte da comunidade católica louvando sua chegada, mas outra parte revelando rejeição e preocupação com a sua vinda. Sei disso porque vem daí o meu primeiro contato com a figura do Arcebispo – pois sua chegada foi tema de um trabalho da Cadeira de Técnica de Redação, pelo professor Luís Beltrão, no Curso de Jornalismo da Unicap, onde eu cursava o primeiro semestre do primeiro ano. O trabalho escolar consistia em ouvir dez pessoas de diferentes perfís, classes sociais e formação religiosa. Dessa “manada” que me coube ouvir, metade se colocava contra a vinda do religioso. Fato curioso: entre meus colegas de classe, também. Mas a Universidade Católica carregava a má fama de ser, na época, em Pernambuco, o berço do CCC – Comando de Caça aos Comunistas, instituição fantasmagórica que nunca se soube se realmente existiu, pelo menos em nosso Estado.
Ainda na Universidade, mais ou menos um ano depois, dom Hélder foi fazer uma palestra como convidado de um diretório estudantil, de qual curso já não lembro mais. Vivíamos também épocas mais turbulentas, muita gente havia sido presa, os atos terroristas começavam a preocupar, o Arcebispo era uma pedra no sapato dos militares. Eu, estudante, estagiava na Sucursal da Editora Bloch em Pernambuco, que entre outras editava as revistas Manchete e Fatos & Fotos. A primeira, com tiragem que chegava a 300 mil exemplares semanais – um número expressivo para a realidade de então. Fatos & Fotos publicava matérias mais jornalísticas e factuais. Corria um boato, verdadeiro ou não, segundo o qual os padres jesuítas, que não se subordinavam ao Arcebispo, cultivavam uma certa antipatia pela figura de dom Hélder que, por sua vez, também não simpatizava com aquela Ordem religiosa.
Dom Hélder acabara de regressar de mais uma de suas viagens pela Europa onde, como vinha fazendo, denunciou os desmandos praticados pelo Governo Militar, já que recebia “da fonte” inúmeras queixas de violência contra opositores do regime, relatando prisões, torturas, perseguições. A imprensa local, amordaçada, (e algumas vezes se autocensurando), não se arriscava a dar muito espaço para as denúncias do Arcebispo. As revistas da Bloch, com sede no Rio de Janeiro, nunca se colocaram contra o novo regime, mas igualmente não discriminavam dom Hélder, que antes de vir para o Recife havia sido Bispo Auxiliar na Arquidiocese carioca. E transitava bem na Imprensa carioca, mesmo tendo algumas vezes trombado de frente com o então governador Carlos Lacerda. Dom Hélder até então ainda não era oficialmente vetado pela censura. Por essa razão, o chefe da reportagem da Sucursal da Bloch no Recife, Alexandrino Rocha, determinou que dois estagiários fossem à Universidade Católica acompanhar a palestra de dom Hélder Câmara, gravassem o conteúdo, transformassem em matéria e, de manhã cedo, enviassem o texto para a matriz, no Rio de Janeiro, que esperava com quatro páginas na Manchete, previamente “negociadas”, para publicação naquela semana. Os dois estagiários éramos eu e Helena Beltrão, também colegas de turma no mesmo curso. Helena era um talento – e infelizmente já não está entre nós.
Nós cumprimos a tarefa: gravamos, retiramos o conteúdo da fita, trabalhamos até as primeiras horas da madrugada, fomos ao aeroporto e, a um passageiro que ia para o Rio, pedimos que deixasse aquele envelope com nosso material no balcão da companhia aérea. Isso era uma praxe, fazíamos isso quase todas as semanas. Na sede da revista, no Rio, havia funcionários cuja tarefa era exatamente apanhar no aeroporto envelopes com matérias que chegavam de várias partes do país.
A revista Manchete começava a circular na quarta-feira e, quando chegou nas bancas, lá estava a nossa matéria, bem distribuída por quatro páginas coloridas, com algumas fotos de arquivo, mostrando dom Hélder em várias situações. Algumas dessas fotos, enviadas por agências de notícias do Exterior: France Presse, Mondadori, Image Bank e outras. Texto da reportagem do Recife assinado por… Alexandrino Rocha. Nenhuma menção a Ivanildo Sampaio ou a Helena Beltrão.
Na pressa para retirar da fita quase três horas de conversa, de dar forma e enxugar a prolixidade de Dom Hélder, de correr para o aeroporto em busca de uma boa alma que se dispusesse a levar o material em mãos e, chegando no Rio, deixar aquilo no balcão da companhia aérea, nós esquecemos de assinar nosso trabalho. Pela lei do menor esforço, alguém, na redação da revista, entendeu que material originário do Recife era sempre de Alexandrino Rocha. Dom Hélder já estava cada vez mais na mira da censura e, tão logo a Manchete chegou às bancas, no Recife, um coronel do IV Exército, ligado à área de comunicação, “convidou” o autor do texto para comparecer e se explicar na 5ª. Seção: Alexandrino Rocha, claro, pois foi ele quem assinou o nosso texto. Ou assinaram por ele.
Quando dom Hélder morreu, escrevi um pequeno artigo, publicado no Diário de Pernambuco, cujo título foi “O adeus ao velho pastor”. E nesse texto eu lembrava : quando o novo Arcebispo chegou ao Recife, em 1964, eu ainda tinha nas roupas respingos de sangue adquiridos na trágica passeata do dia primeiro de abril, que deixou dois mortos e alguns feridos. Foi uma tentativa frustrada minha, de socorro a uma jovem, cujo nome eu nunca soube, e que agonizava numa calçada da rua Duque de Caxias, com um furo de bala um pouco acima do peito. Bala disparada por tropas do Exército contra estudantes indefesos, que tinham apenas sonhos e esperança. Ela foi atingida, eu, felizmente, não. E também lembrava que dom Hélder viveu sempre sob o estigma da contradição: foi, ao mesmo tempo, amado e perseguido, odiado e idolatrado, querido e execrado. Apenas um sentimento ele jamais despertou: o da indiferença. Lembrei que, na fase mais dura dos regimes militares, enfrentou críticos impiedosos e muitas vezes injustos: cassaram-lhe a voz e a imagem, proibiram-lhe o acesso à imprensa. Depois, assassinaram o Padre Henrique, um dos seus mais fiéis auxiliares, outro episódio vergonhoso daquela guerra suja e sem fronteiras. A morte do padre mereceu reportagens na Manchete e na Fatos & Fotos, três delas assinadas por mim – e uma chuva de ameaças que me fizeram deixar o Recife e ser transferido para a Matriz, no Rio de Janeiro, onde fiquei por quase sete anos. A cerimônia do sepultamento do padre ficou na minha memória, para além da eternidade. Como eu descrevi no artigo publicado no DP: “Lembro-me bem do episódio, que cobri como repórter. O corpo do sacerdote foi encontrado, nu e seviciado, nem terreno baldio da Cidade Universitária. Missa de corpo presente na Igreja do Espinheiro. Dom Hélder, o principal celebrante. A batina, adejando como uma sombra negra contra as paredes brancas do templo, as mãos abertas em largos gestos de indignação, as lágrimas caindo sobre as olheiras, àquela altura mais azuis e mais profundas. O sepultamento em clima de comoção. Policiais fardados ao longo do trajeto, desde o Espinheiro até o Cemitério da Várzea. Os lenços brancos do adeus”. Nunca, em minha longa vida de repórter, uma cena me marcou tanto quanto aquela missa fúnebre, aquele corpo franzino do Padre Henrique, a voz trêmula do Arcebispo e sua coragem pessoal e moral, para enfrentar as forças policiais que o ameaçaram pelo longo caminho, desde a Igreja até o Cemitério. Tempos tenebrosos, aqueles.
Demorei alguns anos para rever dom Hélder. Nos tempos em que trabalhei na Radio MEC, ainda no Rio de Janeiro, uma Portaria do então Ministro da Educação, Ney Braga, era taxativa: entre as muitas proibições, uma delas dizia que o nome do Arcebispo de Olinda e Recife não devia, sob qualquer condição, ser citado em programas da emissora. Proibia também qualquer música de Geraldo Vandré e Chico Buarque, além de outras barbaridades.
De volta a Pernambuco, fui morar no bairro das Graças, bem próximo do Palácio dos Manguinhos, sede da Arquidiocese de Olinda e Recife. Quase em frente ao Colégio Agnes, onde hoje se situa um edifício comercial, havia um Posto de Gasolina e, como anexo, um pequeno bar/restaurante, sob a sombra de uma mangueira, onde muitas vezes dom Hélder modestamente almoçava, só e silencioso. Foi ali que ele recebeu o jornalista carioca Marcos de Castro, meu contemporâneo na Manchete, para uma longa entrevista, transformada em livro. Testemunhei o primeiro encontro, no Recife, entre dom Hélder e Marcos de Castro.
Com a chegada de dom José Cardoso para substituí-lo, todo o legado social e cristão de dom Hélder Câmara começou a ser desmontado. Sacerdotes foram afastados de suas paróquias. Alguns estrangeiros voltaram aos seus países de origem. Instituições de cunho social foram fechadas. Bispos auxiliares foram transferidos. Não bastassem as injustiças e perseguições lá de fora – teve seu nome cogitado quatro vezes para o Prêmio Nobel da Paz, e por quatro vezes o trabalho sujo do Itamaraty vetou a oficialização da candidatura. O seu substituto na Arquidiocese de Olinda e Recife trabalhou dia e noite para que a herança de dom Hélder Câmara fosse apagada e esquecida. Hoje, mais de vinte anos depois, o nome dele ainda é reverenciado pelos católicos não conservadores. Já dom José Cardoso, recolhido num convento carmelita no Interior do Estado, que conseguiu desunir a comunidade católica em Pernambuco, deixou a Arquidiocese de Olinda e Recife da mesma maneira como chegou: órfão de amizades e viúvo de seguidores. Para dom Hélder, haverá sempre uma prece, uma citação, um agradecimento, uma lembrança.
Ivanildo Sampaio é jornalista
…
comentários recentes