É sempre bom ouvir com cautela o que ele diz. E isso por várias razões. Desde menino, esse cara que vocês chamam de sequestrador tinha uma mente meio fantasiosa, que estava aqui sem estar. Ele ficava a meio caminho entre o faroleiro e o sonhador. Em segundo lugar, se a última palavra couber a ele, é bom sair da frente porque ele vai escolher para si o papel bom, o lado heróico da coisa. E vai despejar a culpa pelo escândalo – desculpe a palavra, mas tudo se resume a isso, a uma tremenda explosão – na família da moça, se é que não vai responsabilizar a própria família. Ele é boa gente ao modo dele. Mas nunca o vi botar a carapuça na cabeça e assumir que têve responsabilidade intransferível nessa história. Isso é tão fácil de demonstrar quanto empurrar bêbado em laddeira. Ora, quem senão ele teria essa ideia maluca de pegar uma menina que até semanas antes era menor de idade e hipnotizá-la, a ponto de fazer com que ela o acompanhasse aos quintos dos infernos, deixando tudo para trás? E depois, só mesmo um sujeito meio delirante para escolher um destino internacional. Na geração imediatamente anterior à dele, quando essas coisas aconteciam muito, o casal fugitivo ia até o Rio, Fortaleza ou Salvador para sacramentar uma fuga. Ou então se entocava numa fazenda, acoitado por um casal amigo ou um compadre. Ele, não. Para ele o negócio precisava ser meio espetacular, quase artístico. Depois Buenos Aires tem essa estética do tango, da tragédia, da relação carnal entre o homem e a mulher. O enredo tem a assinatura dele, isso está fora de dúvida. Mas o que me interessa mesmo é conhecer as motivações. Dizem que quando ele percebeu que a mãe dela estava sabotando o relacionamento, ele ligou para o gabinete do deputado em Brasília. Dentro da visão meio megalomaníaca dele, era como se dois estadistas precisassem debater sobre a demarcação de fronteiras. Ora, o outro era político velho e escolado e nem deu-lhe pelota. Acho que a intenção dele era boa e foi um gesto de coragem. Eu não sei se receberia um fedelho de 22 anos e se o ouviria. Mas isso a gente só sabe na hora. No que o deputado sequer estremeceu, ele deve ter ficado com os brios feridos. Lá no fundo, ele tem um lado dostoievskiano. O insucesso lhe subiu à cabeça e então ele deve ter partido para o planejamento da ação. Para o tudo ou nada. Foi um erro do deputado. Adversário a gente tem que ter por perto, ao alcance da vista. Uma vez eu o ouvi dizer: não me deram opção, tive que fazer o que fiz. Nisso nosso sequestrador soou sincero.
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Na faculdade, nossa turma ficou dividida. Havia a torcida dela, a torcida dele e os que queriam o bem do casal. Devia haver os que queriam o mal também. No geral, estes são os mais numerosos mas têm vergonha de se expressar assim e ficam só na torcida, amoitados, fazendo figa. Em favor dela, todo mundo dizia que era uma princesa. Bela e elegante, podia não ser grande aluna mesmo porque entrou na faculdade muito cedo e vinha de um mundo de redoma. Parece que teve épocas que nem à escola ela foi, que tinha só profesora particular. Isso impressionava. Ao mesmo tempo, apesar das bolsas de grife e do ar de sinhazinha em visita à senzala, ela era muito simples. Era parte do projeto civilizatório dela se mostrar despojada, como uma inglesa em visita ao Quênia. Como ela faltava a muita aula por causa das viagens de família e até por certo desinteresse pelo curso, ela tinha umas cupinchas que mantinham um caderno para ela, assinavam a lista de chamada quando dava e estavam sempre dispostas a tudo para agradá-la. Geralmente eram moças pobres do interior que ela acolhia naquela casa imensa, a pretexto de fazer trabalhos para a faculdade. Elas diziam: a princesa pirou pelo plebeu. Já outros falavam justamente o contrário. Era como se o príncipe fosse ele. Ele também vinha de uma linhagem política antiga e tem praças e hospital no Recife batizados com o nome dos ancestrais do lado do pai e da mãe. Dinheiro ela tinha mais porque a família estava alinhada a 64, como dizíamos na época. Mas vida de realeza quem teve foi ele. Os caras que vinham do mesmo colégio diziam que ele desde muito cedo já tinha ido para a Europa, sacrificando até um ano letivo. Ele falava línguas estrangeiras com uma naturalidade incomum e alguns desconfiavam que era judeu. O que afinal tinha ido fazer em Israel, trabalhando em kibutz? Ela tinha escolhido o único ali que era capaz de fazer e acontecer. Se ela queria ser feliz e se tornar uma mulher livre, a chance que ela viu foi com ele. Ele sim poderia levá-la para a Buenos Aires de verdade, e não para a cidadezinha homônima perto do Recife. Muitos dos meninos achavam que ele tinha estragado a vida, que ia ficar uma espécie de nódoa no currículo. Mesmo que não fosse sequestrador na forma da lei, estava manchado. E tinha, é claro, uma galera mais romântica que vibrava com o que eles tinham feito. Teve gente até que chorou, inclusive um amigo nosso. Eu não era nem contra nem a favor. Ora torcia para que ele fosse um herói mesmo, ora para que o tempo desmascarasse um farsante. Ele provocava inveja sim.
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Para começo de conversa, os dois eram muito novos. Até a filha deles fica estarrecida hoje quando olha para trás. Eu acho que em circunstâncias normais de temperatura e pressão, o namoro ia morrer por diferença de estilo. Ele era farrista, de alma meio estabanada. Naquela época, era comum que o casal se visse na varanda da casa da namorada até onze horas, meia-noite. Depois, a depender do dia da semana e do orçamento, o homem ia direto para a zona. Ele não escondia que gostava de ir para o porto. E não era para sair com puta, até onde a gente sabe. Era para ouvir música com os amigos e a marujada de tudo o que é nacionalidade. Ela não ia a esses programas e talvez nem soubesse exatamente o que ele fazia. Embora tivesse sido educada para achar natural que o homem fosse se satisfazer sexualmente com outro tipo de mulher, contanto que ele nada dissesse. A gente conhecia algumas meninas que o acompanhavam nessas baladas, que ficavam dançando até a madrugada naqueles sobrados. Ela era uma moça que pouco tinha visto do mundo, que tinha feito viagens inocentes com os pais e avós. Tudo nela apontava para o conservador, para o austero, quando muito para o reformista à la Lampedusa. Jamais para o revolucionário, para o disruptivo. Era só deixar que um satisfizesse a curiosidade pelo perfil do outro e pronto. Quando o namoro acabasse, logo cada um estaria reintegrado à sua tribo de origem e a vida continuaria. Não é que eles não se gostassem. Longe disso. Mas logo apareceriam outras companhias para os dois. Ele já tinha namorado bastante desde os 15 anos. Com a primeira namorada, uma moça linda, ele tinha uma relação de muito mais proximidade do que com ela, acho eu. E se é verdade que nossa sequestrada tinha loucura para sair de casa, para começar a vida, que já não aguentava a mãe, o que é compreensível, logo apareceria um cara mais velho, com situação definida, um jovem deputado, colega de bancada do pai, enfim, qualquer coisa assim. Tudo menos ele, que era puro hedonismo. Mas aí houve a proibição. O fruto proibido leva a humanidade à transgressão desde o começo dos tempos. Na cabeça meio imatura dos dois, se alguém estava proibindo, era porque alguma coisa muito boa estava por trás daquele édito real. O que seria? A crer no que eu vi e senti, o casamento correu até muito bem. O dois eram cúmplices e amigos e pareciam curtir o comecinho de vida deles em São Paulo. Quem olhasse de fora diria que eles tinham muitos denominadores comuns. Até os pais dela tiveram que admitir que ele era um ótimo cara ao modo dele. Um pouco independente demais, mas isso tinha lá suas vantagens.
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Eu acho que o pai dele sabia de alguma coisa e ficou naquela de receber as visitas com uma expressão de preocupado, mas era só fingimento. Ora, o reencontro deles aconteceu no Recife, ele já morava em São Paulo nessa época. Ele estava no primeiro emprego, morava numa república na Vila Mariana e nem direito a férias ainda tinha. Imagino que o salário dele não podia ser essas coisas. Ele nunca foi de poupança. Muito menos econômico. Com que fundos ele teria bancado uma viagem daquela? Só se era o ouro de Moscou, como dizia a futura sogra. Falando sério, ele pode ter apelado para o pai. Talvez nem tenha detalhado do que se tratava, mas meu tio tinha estado com ele em São Paulo pouco antes e o tinha achado triste, infeliz. Então eu imagino que ele tenha contado a ele que esteve com ela no Recife. E pedindo segredo, talvez tenha dito que ela estava indo morar com ele, sei lá. Meu tio que não era de pensar duas vezes nessas horas, achando no fundo que era mesmo uma sacanagem que alguém os impedissem de namorar, deve ter farejado alguma coisa no ar e aberto a carteira. Especialmente por achar que a felicidade do filho podia passar por aí. Pode ser também que não. Ele podia ter dinheiro para as passagens e a hospedagem ou pode ter pedido emprestado ou feito um crediário. Dinheiro pouco não foi porque os passeios em Bariloche foram estilosos, ele sempre falou do hotel Llao Llao. Se meu tio não os ajudou na ida, ajudou na volta porque ele deve ter regressado liso de tudo para montar uma casa. Naquela época, não se tinha cartão internacional. Mas isso é detalhe, admito. É interessante só por saber que meu tio estava fazendo puro teatro quando a família dela procurou-o, botando panos mornos, dizendo que nada tinha contra o filho dele, enfim, aquelas coisas de quem precisou da faca no pescoço para sentar e negociar. A única coisa que me martelou o juízo desde a primeira hora foi que aquele jovem casal não tinha a prerrogativa de dar errado, coitado. Era dar certo ou dar certo. Era Pernambuco em peso de olho no número que eles iam performar no trapézio sem rede, como meu primo diz até hoje. Se os colegas de geração torciam a favor, imagine o resto do pessoal urubuzando. Imagine a pressão psicológica que eles não sentiam. Quando ele começou a viajar mundo afora a trabalho, o que foi pouco depois do casamento, ele veio me falar que tinha tido uma sensação horrível de falta de ar, que achava que tinha sido desligado da tomada, que talvez tivesse infartado. Não se falava de Síndrome do Pânico na época, mas aquilo era nitidamente emocional. Eu até recomendei um terapeuta da Sociedade. Mas ele preferiu tomar um placebo que o cardiologista quadradão receitou.
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Você tem o desplante de dizer que é amigo daquele degenerado? Pois se fosse meu marido, eu já tinha cometido uma besteira. Degolado, capado, sei lá mais o quê. Minha prima largou uma vida de princesa para ir morar com ele. Quando fui fazer uma visita ao apartamento deles, chega me deu pena. O banheiro da casa dela em Recife era maior do que o apartamento todo. Mesmo assim, dei a maior força porque sabia que o esquema lá era pesado, que minha tia era moralista e que pelo gosto dela transformava a casa num convento. Mas aí, com meses de casados, um ano ou por aí, não é que aquele cachorro – desculpe a palavra, mas é a mais branda que eu consigo achar pra ele – largou-a num sábado para vir fazer uma farra em Salvador? Chegou com um amigo que era uma pecinha na casa de minha prima, os dois bêbados de cair, dizendo que tinham ido comer uma feijoada e resolveram fazer uma aposta. O amigo disse que pagaria a viagem aérea se ele topasse pegar o avião e voar naquele momento sem dizer nada à família. Ele topou, o cafajeste. E isso porque a sogra dele estava em São Paulo e eles tinham combinado de ir ao teatro naquela noite. Ele ligou de Salvador para minha prima que ficou desmoralizada na frente da minha tia, que era, com razão, a grande opositora do casamento. Ele só veio chegar no dia seguinte de noite, ainda alto. Minha prima foi mansinha demais. Pediu só que ele ficasse 3 meses sem ver o tal amigo e um mês sem beber. Para comemorar, ainda beberam o último uísque. Eu disse: nunca na minha vida eu teria perdoado uma humilhação dessa. Nunquinha. Mulher na parada não tinha, isso eu sei porque eles passaram a noite toda na casa de minha outra prima, conversando água e bebendo ideologia. Mas eu nunca mais consegui vê-lo com os mesmos olhos, Deus me livre. E agora você vem dizer que é amigo dele? Gente boa uma pinoia, aquilo é um dissimulado. Sabe o que foi que minha tia me disse em confidência uma vez?Que ele só casou com ela achando que o meu tio ia dar vida mansa à carreira política dele. Sabe como é, não é? Ele não podia ser votado em Paris ou em Londres. Então que fosse meu tio deputado garimpar voto no Sertão para que aquele filho da puta, desculpe dizer, ficasse de flozô à beira do Sena. Todo mundo já fez sua cota de merda na vida. Não pense que o meu marido é santo porque não é. Eu fico de olho bem aberto, tudo se sabe nessa cidade. Agora quem tinha uma história como a deles, merecia mais compostura. Ela não merecia passar pelas humilhações que passou por conta de um franco atirador. Agora me conte: como ele vai?
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