Budapeste, 5 de março de 2020.

Querido P,

Preciso dizer que Budapeste é a capital europeia que mais amo? Acho que não! Seja qual for a estação, chego aqui de alma alegre, como se, de alguma forma, a imortalidade me tocasse. Como se eu fosse um homem quase indestrutível, cheio de reservas internas para enfrentar adversidades das mais variadas espécies, e a reatar a qualquer instante com a alegria de viver – se a perspectiva de curtir a cidade estiver à mão. Senti isso ao chegar à estação de Keleti, no trem de Viena. Ao ver os prédios da região ainda polvilhados daquela fuligem que data da guerra. Senti isso ao caminhar pelas margens de Buda para de lá mostrar Peste ao meu amigo – a ele que ficou mesmerizado diante do Parlamento, tal como eu aos 19 anos, quando vim aqui pela primeira vez. Voltei a sentir esse frêmito no café Gerbeaud, enquanto comia uma torta de abricó e tomava um chá verde, cercado pelos óleos vetustos de uma das mais tradicionais confeitarias da Europa Central. Haja intensidade, não é? 

Ao lado do computador em que te escrevo, aqui tenho nacos de salame que comprei no mercado ontem. São todos caseiros – alho, páprica, pimenta. A toda hora, corto um pedacinho e esse aroma me transforma. Se estou com sono, desperto imediatamente. Se estou pesaroso, a angústia (tão rara) se dissipa. Se estou encalacrado num impasse de criatividade, eis que o salame me dá um empurrão. Já pensou? Aqui gosto de ir para a rua, de caminhar pela ilha Margit, de passear pelas margens do Danúbio, e de subir os contrafortes de Buda. Gosto sobretudo de passear em Peste, de entrar nas livrarias para folhear os livros nessa língua do cão, de trocar um olhar com uma dona de casa cheia de sacolas, de pegar um ônibus sem destino e ver no que vai dar. É como se os minutos que passo longe da rua fossem me fazer falta mais adiante, e que eu deplorasse até o tempo que gastei para dormir. Só São Petersburgo consegue tanto! Lá cheguei a ficar 72 horas em claro no verão, desperto e acelerado.  

É tamanho o enlevo que me prende à cidade que não sinto vontade de falar de mim, como deves estar percebendo. O que teria a dizer, se lá fora é quase primavera, o termômetro está a dois dígitos bem suportáveis, e os passarinhos começam a se animar nas calçadas da Andrássy, essa rua mítica onde, embriagado, no inverno de 1978, tive a sensação de ver e escutar os tanques do Pacto de Varsóvia que vieram esmagar Nagy e espezinhar um fiapo de democracia? E o que dizer daquele restaurante magiar da rua Victor Hugo, onde comi truta dos Cárpatos e dei uma gorjeta milionária ao violinista (talvez U$1), o que causou comoção? E sobre os cílios chamuscados que levei da rua Gogol quando, meio lento, deixei o gás escapar e risquei o fósforo com imperdoável atraso? E a reação de pavor da dona da casa que veio me trazer o café da manhã no quarto, talvez até com intenções oblíquas? Vou morrer e poucos saberão que amei tanto Budapeste. 

Penso que uma das coisas desesperadoras de morrer é ir embora sem deixar lavrado o quanto se gostou de alguma coisa ou de alguém. Vá ver que boa parte da força propulsora da mola da arte venha daí. Da urgência de se deixarem lavrados nossos afetos, nossas predileções, nossa dependência. Dependência esta que pode ser do corredor do osso externo de uma mulher, lá onde se estende um vale entre os seios, ou de uma cidade vitalizante como essa, ou mesmo do Recife – uma esplendorosa nas reentrâncias da alma inescrutável. Outra, simplesmente maurícia! Como é a vida de quem não sente a necessidade de registrar esses afetos? Talvez melhor e mais fácil. Mesmo porque talvez os esteja registrando sem grandiloquência nem palavrório, no silêncio do exercício do convívio. Sabe-se lá! Quanto a mim, preciso escrever. E fazer como faz meu amigo Evandro, o escritor de Araxá, que, tendo perdido a filha de 50 anos há poucas semanas, está ensandecido sobre seus escritos, mergulhado num livro-salvação que é a única coisa que o mantém desperto, pronto para se levantar da cama e lutar pela vida. 

Vou sair, Primo. Chega de ficar cantando meu amor à Hungria. A Hungria está lá fora e tenho que ir até ela. Tenho que gastar as solas nas calçadas e, quem sabe, encarar mais um passeio na ilha Margit, aqui pertinho, local onde acontecerá uma parte do livro que estou escrevendo. Ou, pelo menos, buscando condições minimamente benevolentes para escrever. O aroma dos salames toma conta do quarto e perfuma o ambiente. Meu amigo aguarda lá embaixo para um passeio e eis uma coisa que faço com prazer. Dos 65 dias de 2020, passei apenas 6 aí no Brasil. A despeito de gostar da vida paulistana, não há como negar que não sinto a mínima falta de nossos sabiás. No fundo, me regozijo pela vida que abracei. Se não foi perfeita, não deixei nenhuma brecha entreaberta ou por explorar, sem que levasse devidamente a sério meus desejos íntimos. Pelo menos é assim que avalio minha trajetória e, em particular, as opções que abracei nesse último terço de vida. A prevalecer as circunstâncias, assim queria levar o (pen) último quarto. 

Bj, 

FD