Para aqueles que nunca o leram, Proust desperta veludos de desconfiança e um imaginário que corresponde a muito pouco do que edificou em sua obra “Em busca do tempo perdido”. Mas fama e glória também propiciam o canto do galo do ditado popular: ouve-se, mas não se sabe onde. De resto, o título do seu imenso livro (o mais longo romance já escrito) presta-se a equívocos e a vulgares trocadilhos. Além disso, convenhamos, são pouco atraentes os títulos dos sete volumes nele reunidos. São simples e muito genéricos. Que caminho é esse de Swann? Quem é Swann? E “A prisioneira”? E “A fugitiva”? E “O caminho de Guermantes”, onde nos leva? E por que de repente, no meio da obra, esse bíblico “Sodoma e Gomorra”? E por que “o tempo [é] reencontrado”? Sem falar no volume consagrado pelo Prêmio Goncourt de 1919: “À sombra das raparigas em flor”, cujo título foi sugerido por um jovem amigo seu. Título que o próprio Proust julgava, com razão, um tanto sentimentaloide.
Nosso escritor também acalentou chamar todo o romance ou o último volume de “A adoração perpétua”. Não é preciso recorrer a grandes especialistas para ver nesse título o pendor místico do agnóstico Marcel Proust! Não por acaso, há quem já tenha encontrado na “Busca” uma espécie de ascese espiritual, leitura que não deixa de ser pertinente e sedutora. Por sua vez, “As intermitências do coração”, título significativo para a compreensão de Proust, também foi pensado para ser aplicado a um dos volumes, mas virou uma parte de “No caminho de Swann”. Enfim, com ou sem bons títulos, o escritor semeia surpresas e cria marcos e referências que muitas vezes são invisíveis ou ilegíveis à primeira leitura. Para repetirmos André Gide, a obra proustiana é como uma floresta encantada onde apreciamos nos perder…
O fato é que esses títulos simples e até simplórios embaçaram, por assim dizer, o desejo de Proust de legar aos leitores um único maciço verbal. Tudo indica que hesitou muito até chegar aos nomes e divisões que permaneceram. Quanto ao nome “Em busca do tempo perdido”, a grande proustiana brasileira Leda Tenório da Motta defende, em seu livro “Proust, a violência sutil do riso”, que esse título vem de um dos escritores favoritos de Proust: o crítico de arte e esteta britânico John Ruskin. “Trata-se, diz ela, de um autor que, entre muitas outras contribuições fundamentais à obra máxima de Proust, lhe sugere seu próprio título. É de um livro de Ruskin de 1900 chamado ‘Praeterita’ — ‘Coisas passadas’ — que Proust retira nada menos que a ideia de escrever ou subscrever o movimento geral do seu romance sob uma busca do tempo perdido”. De Ruskin, o gênio francês foi leitor, tradutor e, nas palavras de Leda, “incansável divulgador”. Do britânico, segundo vários analistas, também teria vindo muito do estilo proustiano.
Como quer que seja, muito embora uma história editorial longa e complicada, “Em busca do tempo perdido” impôs-se à posteridade e, ao longo de quase um século, vem fascinando gerações de críticos e leitores ao redor do mundo. Digo “quase um século”, porque só a partir de 1928 é que a obra passou a ser editada por completo. Por suas singularidades existenciais, pela filogênese de sua criação, pela monumentalidade de seu maciço literário, Proust, após cem anos seu falecimento, conta com uma fortuna crítica que não para de crescer. Muito mais que seus contemporâneos, somos nós que temos um instrumental crítico para dele extrair e aproveitar todas as múltiplas faces e interfaces de sua arte. Por isso, podemos dizer, um tanto filosoficamente, como seu grande especialista Jean-Yves Tadié: “Escrevemos sobre ele porque ele escreveu sobre nós”.
“Em busca do tempo perdido”, não obstante dialogar com sua época, é muito mais que uma crônica social em que aristocratas e burgueses vivem seus valores numa atmosfera de esnobismo. Seus vastos painéis constituem uma épica do cotidiano (Álvaro Lins), a qual, por assim dizer, é apenas uma face, dentre tantas outras, na polifonia do romance. Nessa obra inclassificável, igualmente plena de metaliteratura, tanto ecoa a herança clássica quanto reverberam a modernidade e o futuro. Tem algo de um Dante sem teologia. Tem algo de um Quixote sem o rigor idealista do andante cavaleiro. Sem falar do tanto de Racine, o autor que mais cita. É obra que arrasta consigo a tradição dos moralistas franceses (Montaigne, Pascal, La Rochefoucauld, Joubert…), que faz misturas impensáveis e decantações nunca antes imaginadas. É mais que um romance, falta-lhe um nome. Seu título, visto por esse ângulo, é apenas um detalhe e nada tem de saudosismo.
Mas será que obra tão louvada se aproxima de uma suposta perfeição? Não teria erros? O gênio de Proust teria se expandido apenas em acertos e virtudes? Nada disso. Que o diga o professor Alexandre Bebiano, da USP, em vários de seus estudos sobre o método proustiano. Há, sim, erros e defeitos, mas, por outro lado, fartamente compensados pelo talento proustiano, por sua fecundidade verbal, por sua capacidade de ver o “invisível” e de erguer poderosos símbolos onde outros só veriam amenidades. Como assinalou Georges Cattaui, Proust traz a poesia para dentro do seu romance. Ele faz da metáfora o próprio núcleo, para não dizer a própria vida de seu estilo. Por isso, sendo toda metáfora literalmente “transporte”, seu texto também é um louvor à mobilidade e ao tempo, à essência do que somos. Como outros já notaram, Proust, ao reconhecer as limitações do espaço, insufla no ser humano a grandeza que este só adquire na dimensão do tempo.
Eis, em pouquíssimas e simples palavras, o autor de quem celebramos, neste 18 de novembro, os 99 anos de falecimento. Inicia-se, portanto, o ano do seu centenário. Ao redor do mundo, os proustianos, nas academias ou fora delas, estão em festa. Eles têm o que dizer e o que comemorar. Sabem que Proust é inesgotável e inspirador. Sabem que é ele o companheiro que levariam para uma ilha deserta. E é certo que o deserto de tal ilha seria preenchido com a humanidade que o genial francês transportou para seu inexcedível livro.
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