Que outros falem do cineasta, do cronista e do jornalista Arnaldo Jabor. Nesta despedida do artista, gostaria, ao lamentar sua morte, de abrir apenas uma pequena janela para Marcel Proust, quero dizer, me reportar a um texto do cineasta em que este se deslumbra com o genial francês. Seu artigo, publicado há vários anos, no jornal “O tempo” (www.otempo.com.br), vale, além de tudo, pela veemência (aliás, veemência não faltava a seus comentários) com que expõe sua experiência pessoal da leitura de “Em busca do tempo perdido”. Chego a imaginar que o próprio Proust vibraria com suas palavras, com sua exaltação de quem chega de uma viagem maravilhosa a um país de encantos. Abro a janela, deixo que Jabor se debruce para vocês e que diga seu título exagerado e certeiro: “Proust é tudo”.
É um Jabor já idoso que confessa que nunca havia lido Proust, ou melhor, que só havia lido o primeiro volume de “Em busca do tempo perdido”, pecado que, de resto, ocorre a muita gente boa. Confessado o pecado, ministremos a absolvição. A propósito, Robert Proust, irmão do escritor, dizia brincando que muitos só liam seu irmão ao terem que passar um tempo acamados e doentes. Por outro lado, o próprio escritor sabia que destoava do tempo, comparando seu colossal romance a uma tapeçaria grande demais para as paredes dos pequenos apartamentos contemporâneos… Daí a “blague” de Anatole France: “A vida é curta, e Proust é muito longo”.
Jabor prossegue em seu texto. Diz que passou cinco meses lendo exclusivamente os sete volumes da obra. Portanto, leu em boa velocidade. E logo nos diz de uma sensação com a qual muitos certamente compartilham: “[…] agora que acabei, tenho vontade de começar de novo, como se a vida se me esvaísse e eu precisasse de novo alento. Fechei o livro como se perdesse um amigo”. É isso mesmo, sentimos um irresistível desejo de voltar ao começo, de não perdermos uma preciosa intimidade. Sem falar que numa única leitura, dada a quantidade de informações e detalhes, não conseguimos aproveitar tudo.
Com seu romance, nos lembra o articulista, “Proust ilumina o momento mais fecundo do modernismo […] sob o mesmo vento que batia em Joyce, Picasso, Freud, Einstein, vergado sob a relatividade do espaço-tempo […]”. Do ponto de vista histórico, Jabor recorda que a sociedade retratada pelo escritor oscilava “entre a aristocracia decadente e a burguesia afluente, num jogo [entre ambas] de fascínio e desprezo mútuos, ali, no começo do antissemitismo do século XX [vide o caso Dreyfus, que polarizou a França] e das tragédias que iam culminar em Hitler”.
E, agora, com a devida licença e respeito aos admiradores de Joyce e do hoje centenário “Ulysses”, trago à nossa janela esta citação lapidar (da qual suponho Millôr Fernandes assinaria embaixo): “Mais que Joyce (perto de Proust, ele parece um frio fazedor de trocadilhos), ele inventa a literatura moderna”. Recordemos que ambos, Joyce e Proust, encontraram-se uma vez em Paris e protagonizaram um patético episódio de mútuo desconhecimento; além do que, a fumaça do tabagista irlandês teria deseducadamente incomodado o asmático francês… Não se bicaram.
Finalmente, Jabor termina por lamentar sua volta à realidade nacional, da qual foi hábil e polêmico analista: “A mediocridade geral da República volta como uma maré suja, as notícias do erro nacional, as imagens da feiura, a morte da beleza batem à porta”, concluindo que “Talvez o maior êxtase de ler Proust resida em nos lembrarmos de como era a beleza, como era a esperança na arte” e enfatizando, como uma chave, que “[…] nós não estamos no futuro desse tempo passado, não. Com todo o progresso da informação e da tecnologia, nós somos sua decadência”.
O artigo é muito bom, exceto por uma simplificação que mais parece vir de um alter ego politicamente incorreto, numa concessão (para um retórico efeito de contraste?) à voz da multidão ignorante e preconceituosa; nas palavras de Jabor: “[…] ele, uma bicha solitária em pleno preconceito dos anos 1910 […]” (grifo nosso). É fato consabido que Proust foi estigmatizado por sua homossexualidade e por ser judeu (já que era filho de uma mãe judia). Não por acaso, Emilien Carrassus, em seu livro “Le snobisme et les lettres françaises”, nos aponta com oportunidade: “Bem antes de Sartre, Proust sentiu o quanto o olhar dos outros, tal como o de Medusa, nos petrificava, nos congelava em um ‘en soi’ diferente do ser real e movente; ele tocou o caráter social do fenômeno”.
Enfim, deixo aberta essa modesta janela: a claridade é de Jabor. Só faço um reparo ao seu título totalizante, que poderia ser este, não menos enfático e sintético: “Proust viu tudo”. Enfim, Jabor soube ler Proust. Terá relido, como diz que teve vontade, e é tão necessário aos leitores do autor? Não sabemos. “A vida é curta, e Proust, muito longo”. Que Jabor descanse em paz, com a prece de nossa gratidão pelo grande artista que foi.
Querido Primo!
Cada vez que leio um artigo seu sobre o “petit Marcel”, cobro a mim mesmo a retomada da leitura do “Em busca…” em sua integralidade, sempre adiada. A boutade de Anatole France (“A vida é curta, e Proust é muito longo”) acendeu um sinal amarelo: quase septuagenário, será que mesmo que retome a leitura agora, terei tempo de terminá-la?…
Apenas um reparo: não vejo a qualificação de Proust como “uma bicha solitária em pleno preconceito dos anos 1910” como uma concessão de Jabor à “voz da multidão ignorante e preconceituosa”. Uma palavra como “bicha”, na boca de um desbocado Jabor , usada num contexto em que realça a solidão do autor ditada pela sociedade preconceituosa da época, soa-me, ao contrário, como uma espécie de desagravo e mesmo um tratamento carinhoso.
Abração,
Luciano