“O uso do cachimbo faz a boca torta, diz o povo”, e diz muito bem. Por isso, peço perdão por parodiar Guimarães Rosa em contexto muito longe de sua genial literatura. Diz o escritor mineiro, em “Grande Sertão: Veredas”, que “a flor do amor tem muitos nomes”. Pois bem, a flor carnívora e tóxica da corrupção também tem muitos nomes, só que não se pensa neles com tanta ênfase e atenção. Pelo contrário, nosso povo logo liga a palavra “corrupção” ao universo do dinheiro, aos subornos, às equívocas transações comerciais. Mas a corrupção que encharca o País está longe de se limitar a esse conhecido e tenebroso mundo, assim como está longe de se limitar a um partido, a uma classe, a um grupo social. Daí não poder ser critério exclusivo para se julgar candidatos de qualquer tendência, não obstante a honestidade e a confiança serem, “il va sans dire”, pilares obrigatórios na sustentação do edifício social. No caso do Brasil, a nação já anda fatigada de tantos moralistas (quase todos cínicos ou hipócritas) a prometerem o fim da corrupção. Faz de conta que essa é a verdadeira pegada democrática, faz de conta, quando, a rigor, nossos maiores problemas são de ordem estrutural e não têm soluções fáceis ou salvacionistas. É conversa pra boi dormir…
A corrupção brasileira assume vários nomes e inúmeras facetas. Machado de Assis, que percebeu como ninguém toda a malandragem do seu tempo, disse numa crônica que “O brasileiro já nasce com a bossa da ilegalidade”. Exagero retórico à parte, a verdade é que a corrupção desde o berço se debruça sobre a nossa vida, assombra nossos sonhos, seduz os incautos e os talvez predestinados a seu desfrute.
Que o leitor ou a leitora me permita ir à raiz latina da corrupção no clássico Dicionário Latino-Português Santos Saraiva, de 1927. Ali encontramos que “corruptio, onis” vem de “corrumpere”, cujos sentidos e usos podem ser enumerados: ‘destruir’, “estragar”, “arruinar”, “prejudicar”, “deitar fogo às vinhas” (pode-se atualizar “vinhas” para “biomas” e “florestas”…), “fazer com que alguém perca o dia”, “destruir os recibos dos devedores”, “tirar o juízo”, “iludir a vigilância de alguém”, “perverter os costumes”, “envenenar as fontes”, “corromper um exército”, “perder as ocasiões”. Eis, amigas e amigos, o amplo espectro da corrupção, sendo dispensável dizer que o nosso cotidiano político e social está cheio dessas tóxicas flores do mal, que as nossas cidades, campos e planaltos estão eivados de corrupção…
E agora “a pergunta que não quer calar”, mas pergunta não formulada por mim (que de resto, como tanta gente, só tenho perguntas…). A pergunta certeira sai da boca de um personagem do romance “A paz dura pouco”, do grande escritor nigeriano Chinua Achebe, ei-la: “Mas que tipo de democracia pode existir lado a lado com tanta corrupção e ignorância?”. No romance, a corrupção onipresente, acossa a personagem principal, e o narrador à certa altura considera: “Podemos causar mais problemas recusando uma propina do que aceitando. Não foi um ministro de Estado que disse, ainda que num momento desprevenido, alcoólico, que o problema não estava em receber propinas, mas em não conseguir fazer aquilo para que deram a propina?”. Nada como uma autoridade pra colocar as coisas em seu devido lugar!
Não só a flor da corrupção tem muitos nomes, ela tem raízes, tem solo fértil, tem sementes e, de tão viçosa, ri das pragas. Viçosa e viciosa, ela, atualmente, no Brasil, nem se esconde, pelo contrário: exibe-se como a esperança dos desvalidos, molha-se de água benta para enganar o diabo, apresenta-se orwellianamente como a própria antítese do que é. Eis a que ponto chegou a política nacional: o problema não é a corrupção, mas não conseguir fazer com que ela não pareça corrupção.
Brilhante, como sempre! Com louvor especial para as citações e referências à boa literatura.
Obrigado, Mestre Clemente.
Oxalá venham dias melhores.
Abraço
Um artigo muito bonito, sobretudo por suas verdades. Mas por que a situação do Brasil é essa? Não é por falta de prender gente. O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo (atrás apenas dos Estados Unidos e da Rússia). As prisões estão superlotadas (a taxa de ocupação delas é de quase 150%), já temos mais de 300 presos por grupo de 100 mil habitantes, e as prisões já foram identificadas há tempos como “universidades do crime”. Claro que algo está muito errado. Não me convencem teorias do “caráter nacional” ou do “individualismo exacerbado” do brasileiro. Segundo especialistas o problema está na Justiça criminal, que pune aleatoriamente, produz esta sensação generalizada de que a Justiça no Brasil não faz justiça, ou faz justiça apenas em parte e tarde demais. Isso não gera algum cinismo? E há a imprevisibilidade, determinada tanto pela concentração de renda e de poder, que faz com que nunca se saiba com clareza qual o crime e o que são provas, até pela ambiguidade e alto grau deliberado de ofuscação nos textos legais e no linguajar dos juízes em todas as instâncias. Há décadas ouço dizer que 40% das pessoas em presídios não foram julgadas, estão em prisão preventiva, a espera de julgamento. Pessoas que não têm como fazer delação premiada, não têm o que contar. Dito por gente da área. E o que se faz para corrigir a lentidão? Nada. Há décadas se critica a hipocrisia da política de drogas, que tolera o consumo do poderoso e põe na prisão (sem julgamento) os microcomerciantes. O que se faz? A medida mais recente aqui é a dispersão espacial das “cracolândias”, que eram a concentração dos usuários e comerciantes de drogas mais pobres.
Obrigado, Helga, por seu comentário.
Vc tem razão. A questão é complexa e desafiadora.
Abraço