Estado autoritário.

 

Quando, no noticiário, certas palavras e expressões começam a surgir com frequência, não tenhamos dúvida: é um claro sinal de que algo não vai bem no agora ameaçado campo da democracia. Depois das primeiras vidraças partidas, os inimigos avançam ousadamente. Por isso, um dito rural tem sido lembrado alto e bom som: onde passa boi, passa boiada. Não estamos no igualmente ameaçado Pantanal, estamos é num pântano mesmo, onde se confundem terras firmes e movediças, ou alagadas, ou cada vez mais movediças.

Vale a pena recordar as expressões e as palavras que remetem à opacidade do atual governo da República, eis algumas: “O Palácio do Planalto não deu retorno”; “A Presidência da República não se manifestou sobre o assunto” (nem vai se manifestar!); “100 anos de sigilo”; “orçamento secreto”; “gabinete paralelo”. É claro que a ideia de “paralelismo” também aponta para algo que de imediato não se faz visível, que se esconde, que não é oficial. Evidentemente, não foi apenas o atual governo que criou essa postura; o que se precisa dizer é que tal postura, aliás hoje nada sigilosa, tornou-se uma espécie de ordem do dia ou está na ordem do dia. Estranha ordem num regime democrático! À medida que a “ordem” prospera e é acatada, o único progresso que se observa é o da autocracia.

Num conciso livro de 2011, “Democracia e segredo”, Norberto Bobbio nos ajuda a pôr alguns pontos nos ii. Com efeito, logo no início do primeiro ensaio, o pensador italiano vai ao ponto: “A democracia é idealmente o governo do poder visível, isto é, do governo cujos atos se desenrolam em público e sob o controle da opinião pública”. Essa visibilidade ou transparência inerente ao regime democrático é tão elementar que implica uma postura já esperada do agente público. Daí a pergunta de Bobbio: “Que homem político poderia converter em máxima pública e declarar abertamente, no momento mesmo em que tomasse posse de seu cargo, que se apropriará do dinheiro público?”. Eis, explica o mestre italiano, “[…] que o escândalo consiste em tornar público um ato que havia sido mantido em segredo porque, uma vez tornado público, não poderia ter sido realizado, e portanto tinha no segredo a condição necessária para sua efetivação”.

Considerando o próprio contexto político da Itália (o qual, de forma análoga, podemos aproximar do Brasil), Bobbio nos chama a atenção para uma espécie de “subgoverno” ou “criptogoverno”, um governo que age na penumbra, “na mais absoluta obscuridade”. Nesse passo, no que nos diz respeito, não há como não celebrar o bravo jornalismo investigativo brasileiro, quer quando ilumina as manhas do Legislativo, quer quando revela as ações escusas do Executivo, quer ainda quando aponta a omissão das instituições de controle e de fiscalização.

Esse poder que se oculta no seio do próprio poder, Bobbio o assinala como possível de assumir várias formas, mas se detém em três delas, todas simples de se verificarem. Há o poder invisível “que se volta contra o Estado” e há aquele que “se organiza não somente para combater o poder público, mas também para tirar benefícios ilícitos e extrair dele vantagens que não seriam permitidas por uma ação à luz do dia”. A última forma é “[…] o poder invisível como instituição de Estado: os serviços secretos, cuja degeneração pode dar vida a uma verdadeira e própria forma de governo oculto”; sendo que estes só devem integrar a democracia se controlados pelo poder visível.

Naturalmente, dada a “premissa” bobbiana de democracia como o “governo do poder visível”, seguem-se vários corolários. Mas escolhemos do próprio Bobbio o que nos parece mais relevante para o caso brasileiro, ei-lo: “Em um regime democrático é absolutamente inadmissível a existência de um poder invisível que atue paralelamente ao poder do Estado, ao mesmo tempo dentro e contra […]”. No caso nacional, temos uma peculiaridade: a cada dia é mais visível, mais exposta ao público, a víscera maligna que contamina o corpo institucional da República. Não há qualquer pudor em se desrespeitar a Constituição. Não há qualquer pudor em se manifestar opacidade sem opacidade.

Na esteira desse despudorado embaciamento, à proporção que a sombra vai corroendo a transparência, engalana-se uma autocracia em vitoriosa marcha. E, para citar Bobbio uma última vez, é importante ressaltar que “[…] quem promove formas de poder oculto, e quem a elas adere, deseja precisamente isto: excluir suas próprias ações do controle democrático […]”. Por isso, devemos votar em outubro próximo para preservar as regras inclusivas do jogo democrático e a Constituição Federal, cujas páginas, pelo visto, permanecem lacradas para muitos próceres da República!