Assisto no “Bom Dia Brasil” de 19 de junho (quarta última) reportagens anunciando, com ar jubiloso de vitória, o anúncio da diminuição no preço das passagens de ônibus em quatro capitais do país: 15 centavos aqui, 10 centavos ali, 5 centavos acolá. Mais cedo ou mais tarde (acho que mais cedo), também em São Paulo, onde toda a onda de manifestações que varre o país começou, vai-se achar um jeito de revogar o aumento dos 20 centavos que se tornaram emblemáticos dessa nossa inesperada Revolução dos Canjicas – como diria Machado de Assis – em plena época de São João!
O tom irônico do parágrafo acima não deve ser lido como a manifestação cínica de um sujeito de classe média bem posto na vida – como eu –, para quem duas dezenas de centavos a mais ou a menos no bolso não fazem diferença nem valem uma revolução a preço tão módico. De um lado, há muito tempo que não pego ônibus; de outro, centavos, por mínimos que sejam, fazem diferença, sim, na conta de um humilde trabalhador brasileiro que almoça “coxinha” de galinha com “Q-Suco” de laranja no centro da cidade, atento às moedinhas que não podem faltar na hora de pegar o ônibus no fim do dia e voltar para casa na distante periferia.
Assim, esclareço que ele, o tom, foi-me sugerido por uma premonição que tive enquanto assistia à matéria jornalística, que partilhei com a minha esposa: “Quer apostar como no intervalo vão passar comercial de automóvel?” Dito e feito – e não foi preciso esperar: assim que entraram os comerciais, o primeiro foi logo um desses anunciando carrões que podem ser adquiridos a partir (enfatizo o “a partir”!) de 134 mil reais… O abismo (quase surrealista de tão indecente) entre os centavos que milhões de brasileiros pobres precisam poupar e as dezenas de milhares de reais que brasileiros ricos podem gastar visando ao mesmo fim, deslocar-se, deu-me na hora vontade sair às ruas e pegar em paralelepípedo… Mas paralelepípedos – como a Minas de Drummond – não há mais! Assim, voltando ao sério, peguei o lápis e vim escrever um desabafo em forma de reflexão.
A história não cessa de nos surpreender. Ninguém previu e ninguém sabe explicar o que está se passando no Brasil nesses últimos dias. As demandas são as de sempre: saúde, transporte, educação… Tudo isso é antigo e os nossos déficits históricos em serviços públicos são centenários. Mas por que, neste momento, e sem que ninguém previsse, milhares de pessoas estão nas ruas atirando em várias direções e protestando contra coisas aparentemente tão disparatadas como um corte na gratificação de professores no interior do Ceará, a votação em Brasília da PEC que restringe a atuação do Ministério Público, os gastos monumentais para a Copa do Mundo – etc.? Parodiando Chico, é como se fosse “um copo até aqui de mágoa”. Bem, cedo ou tarde, tudo isso vai refluir. E como a “gota d´água” foi a história dos 20 centavos de aumento no transporte público em São Paulo, é bem possível que sua previsível revogação assinale o ponto de inflexão em direção ao refluxo. Com o que volto à história da revolução dos centavos.
O meu receio é o de que a vitória que se anuncia termine numa crônica de canjica de São João: tudo fica como dantes no quartel de Abrantes e uma questão histórica e estrutural deixe mais uma vez de ser encarada de frente e com a seriedade que merece: a “opção” (haja aspas!), que remonta aos anos dourados do governo Kubitschek, de se atrelar o desenvolvimento do país à indústria automobilística, o que levou a uma política de transporte que privilegia a rodovia em detrimento da ferrovia, e o deslocamento individual em detrimento do coletivo. É uma aberração um país de mais de oito milhões de kilômetros quadrados sem trem! Como tem sido uma aberração estimular o crescimento econômico reduzindo o IPI sobre os automóveis… O resultado de tudo isso é o descalabro em que se tornou o que tem sido chamado de “mobilidade urbana” – nome bonito, mais um desses termos técnicos “neutros” que nem fedem nem cheiram, enquanto as pessoas comuns continuam suando e sacolejando em ônibus apinhados. Nessas condições, até a “tarifa zero” já será cara…
É sempre um prazer ler os textos de Luciano. Suas reflexões de profunda seriedade sem esquecer o toque de humor tão característico seu, dão um tom a mais nas sextas-feiras de “Será?”
Quanto às manifestações, acho que chegaram um pouco depois da hora. Elas deviam ter acontecido quando inventaram essa Copa no Brasil e as Olímpiadas no Rio (não seria uma nova tentativa do Brasil Grande?, quando da eleição dos presidentes da Câmara e do Senado. Como disse um médico ontem: queremos hospitais de Primeiro Mundo iguais aos estádios. Será que ele não sabe que hospitais (coloquemos também aí escolas) não dão belas fotos iluminadas como as do Maracanã, Fonte Nova, Castelão…
Prezado professor Luciano:
Penso que a infalibilidade que a mestranda da universidade de Campinas se atribui,magnanimamente por ela estendida aos seus auxiliares, finalmente cansou a juventude. Credibilidade se adquire com boas ações e, infelizmente, estas andam escassas, substituídas que estão por um palavrório vazio e mofado.
É a primeira vez que vejo protestos além dos partidos políticos e esta novidade deve ser vista como positiva.O vandalismo, ainda que pernicioso, é um fenômeno secundário e deve ser combatido mas não transformado em justificativa para desfigurar o movimento.
Atenciosamente
ednardo
Muito bom!
Luciano,
Perguntei-me se diria pela enésima vez que seus textos são bons demais. Digo. Fazer o que se é verdade?
Ontem estive na manif. de Aracaju e achei impressionante (nunca se viu tanta gente junta nesta cidade) mas também meio esquisito. Dividiu-se em duas, como se tem visto em outros lugares. Aqui, uma delas dirigiu-se à Praça da Bandeira e parecia contar com lideranças tradicionais (MST, partidos, etc.); a outra, visivelmente mais adepta da chamada horizontalidade das mobilizações do século XXI, seguiu pela Av. Beira Mar. Como sou do tempo dos paralelepípedos, ouvi falar e acreditei que ambas se reencontrariam na Praça da Bandeira e aí continuei andando na da Av. Beira Mar. Mas a “minha” continuou pela Beira Mar e eu fui enjoando de estar ali – triste, mas é verdade. Não sentia aquela efervescência contagiante, parecia que eu estava apenas passeando serenamente pela mesma avenida onde acontece o tal do Pré-Caju, ao lado de todos das velhas classes médias aracajuanas (majoritariamente, é claro). Fiquei com a intuição de que, pelo menos aqui, a mobilização vai refluir mais cedo do que tarde. Grande abraço, Tâmara
Manifestações como estas que estão acontecendo, pela frequencia, pela quantidade de participantes, pelas bandeiras, nunca serão em vão, encare-se da maneira que se queira encarar. Em um único dia mais de 5 milhões de brasileiros foram mobilizados em várias cidades do país, em recantos como Porto Velho, Boa Vista, Imperatriz, que, pelo que sei, nunca ocuparam as ruas independente dos caciques locais. Não vai haver uma revolução, é verdade, a Dilminha vai tentar cooptar o movimento (na verdade, ela, Lula, o PT, o PSTU, o PSOL, e todos os similares…). O movimento vai arrefecer, mas vai deixar no ar as ameaças aos políticos tradicionais, aos corruptos, aos incompetentes, e àqueles que foram alvo de suas bandeiras nestes dias. Não ví nenhuma vitória – a do Movimento Passe Livre pela redução do preço da passagem, foi uma vitória pequenina, que ninguem deu muita atenção. Este assunto ficou pra trás logo no segundo dia das manifestações.
Bom, como na música citada de Chico , o pote cheio de mágoa é o que provocou legitimamente a ¨primavera tropical¨, como a imprensa européia está chamando as manifestações brasileiras. Que seja. Que bom, ao meu ver! Que grandioso motivo, mesmo com um refluxo previsto.Porque, no mínimo, o inconsciente coletivo vai ser enriquecido e, quem sabe, em 2014, ele (o inconsciente coletivo) possa tocar uma campainha na cabecinha de muita gente na hora de votar.
Como prometido, aqui vai o comentário da filha (bastante em linha com o anterior, por sinal)
Enquanto adulta, tive apenas quatro anos e meio de vida brasileira. Foram marcados pela frustração, me (e muitas vezes lhe) perguntando por que será que no Brasil são tão poucos os que parecem se importar, por que será que muitos nunca descem às ruas, nem quando tudo parece estar ao contrário? Agora, à distância, anseio por notícias, leio muitas, acompanho os comentários dos amigos (e do pai). Em meio às dúvidas que surgem (que são muitas), em meio ao ceticismo e ao receio de que tudo, no fim das contas, “fique por isso mesmo”, não deixo de achar que o que está acontecendo no Brasil é belo, e é histórico. Porque a historia é assim, cheia de sobressaltos seguidos de refluxos, voltas ao mesmismo. Por um tempo. Porque no fim das contas, algo desses momentos persiste e fica. No caso do Brasil da Copa das Confederações, acho que pelo menos para mim ficará a sensação, muito boa, que as pessoas se importam sim.
Quanto ao que se segue, bem, o tempo dirá. Mas eu não deixo de achar que, ao contrário de outros países onde protestos similares aconteceram e foram ignorados ou reprimidos, parece que os governantes no Brasil estão dispostos, nem que seja meramente por questões de estratégia política, a escutar. A redução – mesmo que de centavos – no preço das passagens é sim uma pequena vitória. Afinal, quantos protestos contra o aumento das tarifas de ônibus não foram silenciados e ignorados no passado? E quem sabe não seja também um pequeno primeiro passo na direção de uma política mais ampla que diminuirá o numero de carros (que seja de 30 ou 134 mil reais) nas ruas do Recife e outras cidades? A pauta está posta.
Como todos os seus textos, gosto muito desse também. Mas a minha visão sobre tudo isso é mais otimista. O simples fato de estremecer estruturas estabelecidas e o conforto de governantes já é algo, no mínimo, inebriante! Mas talvez seja coisa de geração… Beijo grande
Minha querida Júlia!
Seu comentário me comove como pai e como o autor do artigo com título, reconheço, um tanto debochado…
Fico feliz, acredite, por ter errado na minha suposição de que, com a revogação dos famosos 20 centavos de aumento no preço das passagens de ônibus em São Paulo, o movimento de protesto logo refluiria.
Até porque não há um movimento, mas movimentos; um protesto, mas protestos. Vários, plurais, desconcertantes. E, malgrado a revogação do aumento, o povaréu ainda insiste em sair para as ruas. Viva meu erro!
É logico que haverá refluxo. Afinal, contrariamente ao que pensava Trotski, um dos ídolos da minha juventude que já vai longe, não há “revolução permanente”. De permanente, aliás, só a democracia e sua corriqueira alternância de “grupos em fusão” depois enquadrados pelo “prático-inerte”, para referir-me a um outro ídolo de tempos idos: Sartre.
Mas algo ficará. Aliás, já ficou. Nem que seja o alerta de que a democracia, como quer Lefort, é um regime “indomável”…
Ih… estou citando gente demais. Cacoete de professor, certamente. Volto a você.
Obrigado pela “juventude que essa brisa canta” (Johnny Alf – pelo menos dessa vez cito um poeta), pela mensagem serena e madura, pela esperança.
Estou muito contente com o que está se passando no Brasil neste momento. Às vezes, chego até a me emocionar. Nem pensava mais que ainda teria esses sentimentos de tempos idos e vividos… Que bom!
Com amor, “Papou”.
Mas que beleza ter a oportunidade de ver um diálogo assim entre pai e filha. Nem pensei mais no tema em si, só me vieram à cabeça os versos de Vinícius “filhos, melhor…”, este nem quero terminar, acreditando que para o pai deve estar sendo delicioso viver o “como sabê-lo”.
Meu caro Luciano: Para além do interesse político do seu artigo, que bom ler você dialogando com Julia. Li seu artigo logo que foi postado e gostei muito, como de resto gosto de tudo que você escreve. Agora releio e me arrisco a postar um comentário que é apenas um eco das suas proposições saudavelmente céticas e bem humoradas.
Se eu tivesse uma bola de cristal, ou me chamasse Tirésias, desenharia o seguinte cenário político para 2014: Lula será novamente candidato a presidente da República e será eleito pela maioria silenciosa, constituída sobretudo pelos beneficiários do Bolsa Família. Num país onde a maioria vive ainda no século XIX, ou foi barrada diante dos portões da modernidade, como estranhar que o propagador desse colossal programa assistencialista seja cultuado como um pai provedor? Muita coisa vai mudar e já está mudando desde que o povo ocupou as ruas, mas o Brasil continuará sendo uma mescla surreal de capitalismo globalizado e Estado patrimonial tangido pelas rédeas pré-modernas de uma classe dirigente cuja mentalidade é ainda patriarcal e escravista.
Fernadão: o cenário que você desenha parece bem plausível(cruz credo!)na medida em que Dilma despenca, a Bolsa Familia já “comprou” 50 milhões de votos, e que faltam alternativas com capacidade de capitalizar o descontentamento da população. Mas eu arriscaria dizer que se Lula voltar a ser presidente vai sair desmoralizado, o mito desfeito: a economia brasileira vai mal das pernas (inflação, retração e descontrole fiscal), o ciclo de expansão mundial acabou, a população está cobrando muito mais do que Bolsa, e não terá mais aquela excessiva tolerância com um ex-operario e, pior, ele não poderá mais falar de herança maldita. Bom, ele não tem nenhum compromisso com a verdade e poderá dizer que Dilma o traiu. Mas, será que convence? Espero não tenhamos de viver tudo isso outra vez.
Acho que se a gente amplia o espaço de observação, depois dessas duas semanas, fico com a impressão de que a gente deve ficar mais orgulhoso com as mobilizações do Brasil do que com as do mundo afora. Se é verdade que somos marcados pelo patrimonialismo e que o PT nos governos navega galhardamente nesse mar (com o agravante de ter instrumentalizado mais ou menos movimentos sociais organizados), o mundo inteiro vive um estágio em que o poder das corporações econômicas e seus vínculos orgânicos com a “governança” trazem consequências comparáveis a escala global – vínculos estes que, se não podem ser sub-sumidos sob o conceito de patrimonialismo, fazem da política uma prostituta daquelas corporações. Uma consequência global tem sido um mal-estar social que atravessa classes e identidades sociais diferentes, gerando pautas difusas e às vezes até opostas no mesmo espaço público. Em países socio-economicamente próximos do Brasil, mobilizações gigantes e fortemente configuradas pelas redes sociais explodiram, mas em geral elas foram fagocitadas por forças conservadoras organizadas ou simplesmente ferozmente combatidas por governos autoritários. Já em países economicamente dominantes, cujas democracias são aparentemente mais consolidadas, os Occupy Wall Street e Indignados da vida também tiveram a marca da horizontalidade e das redes sociais, mas parece que mobilizam bem menos do que um ressentimento generalizado e difuso que recai sobre imigrantes ou descendentes de imigrantes – sem falar em mobilizações francamente conservadoras e reacionárias, como as marchas contra o casamento gay na França. Enquanto as nossas, se inicialmente específicas e violentadas pela polícia, exatamente por isso tornaram-se gigantes e rapidamente conseguiram reação positiva do governo e têm feito congressistas trabalharem até na semana junina! Agora, é claro que também temos forças conservadoras (os evangélicos ontem quase tiraram completamente minha alegria; certas reivindicações que apareceram nas manifestações, também); Lula também pode voltar (para mim, o próprio Macunaíma). Apesar disso, conservo esperança. Embora a festa das ruas já esteja aparentemente em refluxo, penso que vários movimentos sociais mais ou menos instrumentalizados pela “governança” do PT podem fazer a diferença a médio prazo, porque eles, há muito, criticam a governança PT. Digo isso porque continuo com a seguinte convicção: as redes sociais mobilizam velozmente, mas são os laços e organizações anteriores e já consolidados que conseguem sustentar um movimento social e configurar seus destinos possíveis. Abraço.
Sérgio: Minha “provocação profética” foi antes de tudo auto-irônica. Quem sou eu para prever a realidade política do Brasil em 2014, se me falta competência até para analisar a política do presente imediato? Por isso minha proposição é deliberadamente condicional: “se eu tivesse…” Meu argumento implícito, notaria o leitor atento, prende-se à história das mentalidades. Você me fornece um argumento explícito (político e econômico), com o qual concordo.
estamos caminhado para uma revoluçao do povo para o povo e agora sem a interferencias do russo e norte americanos o brasileiro ja esta farto de politicos.