Não tenho dúvida de que envelheci bastante no último ano. Não à toa, lá se vão quase 13 meses desde a última vez que escrevi para esta “Será?”, rotina que durante anos me deu tanta satisfação. Por que me privar desse prazer, por que fugir de uma plataforma que, entre outros privilégios, me conectava a Pernambuco, aos meus familiares e ao que me resta de amigos no Nordeste? Francamente, não sei explicar, mas posso tentar. Quando morreu meu tio Ivan Rodrigues, a “Será?” me pediu que fizesse as honras da casa e escrevesse uma palavrinha sobre ele. Acho que me senti pequeno para a tarefa, confuso quanto a por onde começar. Por outro lado, não me sentiria bem se saísse pela tangente e escolhesse outro tema, das tantas pautas mundanas que me tentam. Então deixei meu artigo para um depois que ainda não chegou. Nisso lá se foi um ano. Para agravar o quadro, quase não saí de São Paulo nesse período. Para quem estava acostumado a atravessar o mundo em todas as direções, esse imobilismo beira o inexplicável. E cá no íntimo, é como se eu me sentisse menos interessante, como se a fonte tivesse secado; como se, mergulhado na normalidade de uma vida comum, faltassem elementos de interesse sobre os quais escrever. É claro que o estuário do passado provê sempre pesca farta. Mas há de se respeitar os comensais e evitar servir os lambaris de sempre. Então fugi daqui e me refugiei na restinga das redes sociais, onde eu posso dormir ao relento e onde as picadas de insetos, apesar de muitas, não incomodam sobremodo. Aqui, sempre achei, precisava comparecer calçado e vestido de calça e camisa. Hoje estou ensaiando entrar nas roupas velhas, mas não sei se vou conseguir. Como vem sendo costumeiro, as medidas têm repudiado a roupa antiga. A física é a mãe de todas as ciências.

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Tio Ivan viveu uma bela vida. É bem verdade que hoje sou cada dia mais cético quando digo isso das pessoas porque, evidentemente, são observações que provieram de um ângulo de observação externo, de suposições vagas e, como é evidente, há na vida de todos nós uma dimensão que não é devidamente revelada – salvo para os muito próximos e olhe lá. No caso do meu tio, não temo errar. Lúcido até a última hora, dono de uma memória sobrenatural e queridíssimo onde quer que fosse, talvez eu não tenha conhecido ninguém com semelhante capacidade de criar um clima, de eleger um tema de interesse comum, tudo isso com uma naturalidade tal que deixava os outros perplexos. Para ele não havia sisudez paralisante, não havia barreira que ele não soubesse contornar, mesmo sendo um homem opinativo. Tio Ivan operava em dois níveis de cognição: um pedestre, básico e social. E outro permeado de não-ditos, de onde aflorava a empatia, a explosão incontida de energia e apoio. Aos 11 anos, eu entrei para o Colégio de Aplicação. Não tinha me preparado devidamente; fui o último inscrito, por sugestão de uma amiga da mamãe. Quando o resultado saiu, aquilo nos pareceu banal, quase uma obrigação. Eu só vim a saber que perpetrara um pequeno feito quando tio Ivan apareceu na porta e veio me dar o mais efusivo abraço e os mais estalados beijos de parabéns. Éramos bons cúmplices. Eu passei um bom tempo voltando de carona com ele quando saía do São Luiz. Ele me pegava e ainda passávamos na padaria Rosarinho e na CILPE, onde ele se abastecia de laticínios. A vida para ele era uma celebração permanente. Na surdina de sua vida pública, havia lugar para Elizeth Cardoso, Dorival Caymmi, Lourenço Diaféria, Alberto Dines, “A pedra do reino”, o Pasquim e carne de sol curtida na folha de figueira. Tudo nele era moderado, intenso e constante. Foi um mimado no varejo; e um doador pródigo no atacado.

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Ando sem saudades do Nordeste. Melhor dizendo, aprendi a entesourar as saudades num cantinho sagrado e já não preciso saciá-las com o afã de yuppie que eu trouxe dos anos 1980, que me mandava colocar os pés onde meu coração estivesse. Não preciso mais submeter meu corpo a tantos caprichos, numa espécie de voluntarismo estradeiro gratuito. Nos tempos idos, até antes da pandemia, se eu sonhava com a Tailândia uma noite, interpretava isso como um chamamento irrefreável para chegar a Bangkok no mês seguinte. Se me falavam de um restaurante em Lima, lá ia eu desencavar um negócio no Peru para saciar minha curiosidade sem fim. Hoje já não estou mais equipado para isso, daí não sentir a mínima necessidade de positivar os impulsos. Penso no Recife, vejo os aviões cortarem o céu da Zona Sul de São Paulo e, a depender da proa, sei quando estão voando para o Nordeste. Acho divertido imaginar que a barriga metálica do Boeing logo estará deslizando à sombra dos morretes de barro vermelho dos Guararapes, mas penso no quão sou privilegiado de poder imaginar tudo isso sem sair do lugar, sem me expor às pressões que normalmente o Recife me impõe. Em Pernambuco, hoje só interesso às pessoas em duas dimensões: a) o que pretendo fazer para deter o sobrepeso galopante; b) como organizo minhas finanças pessoais? Nada fora disso interessa aos amigos. No modelo pernambucano, o sujeito me conta sobre seu programa de fitness, fala dos 6 km que caminha todo dia, dos passeios de bicicleta, das braçadas na piscina (Recife oblige!) e do regime alimentar de rigor, só relaxado aos sábados. Depois pergunta: e você, quando vai começar a se cuidar? Pelos códigos pedagógicos locais, ele entra com o exemplo da própria virtude. E, como se lidasse com uma criança, espera elogios à performance. A vida pede uma higiene de performance que só vale se for a dele.

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Na vertente financeira, a minha vida causa verdadeira comoção ultimamente. “Você está bem?” Então vem a cantilena: “Seu casamento acabou na hora errada. Sua mulher era dona de um império. Você não tem mais idade para se separar assim. Onde você vai achar outra igual? Nem em São Paulo, se duvidar… Você gasta dinheiro, gosta de coisas caras, como vai fazer?” Em Pernambuco, ainda corre a crença de que o sujeito casado com uma mulher muito próspera, pega carona na prosperidade dela. Ainda não chegou ao estado a noção de que a única coisa que muda é que o seu dinheiro passa a não valer quase nada e que você precisa equipará-lo para uma vida de mais regalias. Em suma, o sujeito nunca é tão pobre quanto se torna quando é casado com uma mulher rica. Tem mais: é como se durante os anos em que você esteve casado, você tivesse sido um gigolô. Como se houvesse gigolô de 150 kg no mundo! Haja talento. Ninguém pergunta sobre meus sentimentos com relação a ela nem sobre os dela com relação a mim. Ninguém quer saber de nossa cumplicidade que sobrevive à separação e à distância. Sempre que nos falamos – toda semana -, rimos dessa obsessão das pessoas com as finanças dela e dos vaticínios de que, sem ela, eu estou fadado a morar no vão da ponte da Limoeiro, lá onde balançam aqueles barquinhos coloridos. Dizem que eu terei um fim parecido com o de Sansão, um borracheiro alcoólatra que morava entre os caranguejos e que bebia thinner para alimentar o alcoolismo. Ninguém pergunta sobre a antiga namorada que perdi há poucos meses, alguém que nunca saiu totalmente da minha vida. Por fim, Pernambuco se tornou terra inóspita porque em poucos lugares a polarização política invadiu tanto a conversa social e o estranhamento entre amigos. É lógico que isso não é primazia do Recife, mas a reação das pessoas em outros lugares me interessa menos e não me afeta tanto.

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Em Pernambuco, o meu universo está dividido entre os abestalhados contumazes, os reféns dos slogans do capitão, que hoje estão imantados de todos os atributos de uma idiotia que, se pensarmos bem, vem de muito longe. A raiva que eles inspiram não decorre das posições em si, senão de não termos percebido que a sanha furiosa e reacionária estava só camuflada, à espera de uma boa hora para sair da toca. No Recife, sobram homossexuais homofóbicos, pobres de direita, moralistas com prontuário, negacionistas vacinados e patriotas sonegadores. Mas também tem o outro lado. Tem aqueles que por se sentirem com justiça aliviados pela derrota eleitoral do cafuçu, enxergam na volta de Lula uma dádiva em termos absolutos. Quando ela é apenas um refrigério relativo, uma espécie de retrocesso suportável e nada mais do que isso. Um sacripanta que compara Daniel Ortega com Angela Merkel, por sorte que tenha, não poderia inspirar tanta euforia. Às vésperas dos 65 anos, se pensar bem, tudo isso vai para um plano secundário. No frontispício da vida, tenho algumas coisas a fazer para organizar um pequeno legado que contemple as poucas pessoas a quem quero um bem especial. Para o resto, inclusive coisas importantes, começa a faltar juventude. Na política, cheguei a achar que meu amigo Luiz Felipe D’Avila poderia fazer uma boa campanha presidencial. Deixei de lado um bocado de coisa para ajudá-lo, mobilizando pessoas de minha proximidade. Nunca pensei que viveria para ver Felipe tricotando com o capitão e chutando a canela de Lula num momento em que se tratava de alguma coisa ou nada. Felipe cravou no perigoso nada. Foi um dos choques políticos mais retumbantes de que me lembre. Mas vamos lá. Não vou deixar que essas coisas interfiram no nosso encontro de tantos anos. Se ainda me quiserem, pois, estou de volta.

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“Será?” não é uma esquina qualquer. É um oásis venturoso para esse velho dromedário que tem sede e, ao mesmo tempo, preguiça de se debruçar na água.