Mais conversas em livro que estou escrevendo (título da coluna). Como é São João, dia de festa no Nordeste, hoje só com nossos cantadores,
CÂMARA CASCUDO, escritor. No terraço de sua casa na Rua Junqueira Aires (bairro da Ribeira, Natal), próxima da Praça das Mães, dois cantadores esperavam para se apresentar. Foi quando um deles viu besouro cascudo pousar nos ombros do mestre e pegou na viola
– Estou vendo dois cascudos
Um do outro é diferente
Um não tem raciocínio
O outro é inteligente
No mato cascudo é bicho
Na praça Cascudo é gente.
GERALDO AMÂNCIO PEREIRA, cantador (de Cedro, Ceará). Pediram que cantasse as glórias da ciência e ele
– O mundo se encontra bastante avançado
A ciência alcança progresso sem soma
Na grande pesquisa que fez no genoma
Todo corpo humano já foi mapeado.
No mapeamento foi tudo contado
Oitenta mil genes se pode contar
A ciência faz chover e molhar
Faz clone de ovelha faz cópia completa
Duvido a ciência fazer um poeta
Cantando galopes na beira do mar.
IVANILDO VILANOVA, cantador (de Caruaru, Pernambuco). Com muita honra, para mim, sou padrinho de uma de suas duas filhas, Indira Essênia. É dele essa Cantiga de Conselho
– Você pode no muque arrebentar
Seja a porta da frente, ou da dispensa
Mas apenas pedindo com licença
Ela pode se abrir, você passar.
Me perdoe diga sempre quando errar
Não é feio ninguém ser educado
Nem humilde, gentil, ou delicado
O contrário é que é constrangedor
Por favor diga sempre por favor
E obrigado por dar muito obrigado.
JOÃO PARAIBANO (João Pereira da Luz), cantador (do Sítio Pinica-Pau em Princesa Isabel, Paraíba). Fazia cantoria com Rogério Menezes (de Imaculada, Paraíba, embora tenha desde menino vivido em Caruaru), quando um cidadão botou dinheiro na bandeja e pediu que falassem mal das esposas, um do outro. Com as próprias presentes! João não se fez de rogado e acabou sextilha dizendo
– Não sei como tu aguentas
Uma mulher brava e feia.
Rogério respondeu
– A minha mulher é feia
Porém digna e singela
Sua mulher é bonita
Entre todas a mais bela
Por isso que muitos ursos
Estão pulando a janela.
E João completou
– A minha mulher é bela
Estando vestida ou nua
Mais parece uma sereia
Quando desfila na rua
Melhor ser corno da minha
Do que marido da tua.
JOSÉ CARDOSO, cantador (de Encanto, Rio Grande do Norte). O amigo Sebastião Dias, cantador e prefeito de Tabira (Pernambuco), acabou uma décima dizendo que não iria perder tempo cantando com poeta analfabeto, “Afinal sou um Doutor”. E Zé Cardoso respondeu
– Aprendi a cantar sem professor,
Com a graça de Deus eu sou completo
Você vem me chamar de analfabeto
Exibindo diploma de Doutor.
No congresso que eu for competidor
Vou ganhar de você por 10 a 0
Bastião, eu vou ser muito sincero
Se eu deixar de cantar não sou feliz
Ser poeta eu sou porque Deus quis
Ser doutor eu não sou porque não quero.
LOURIVAL BATISTA (Louro do Pajeú), cantador (de São José do Egito, Pernambuco). Numa cantoria deram mote, mulher, e ele cantou assim
– Um cientista profundo
Me perguntou certa vez
Se eu conhecia os três
Desmantelos desse mundo.
Eu respondi num segundo
Doido, mulher e ladrão
E dou-lhe a explicação:
Doido não tem paciência,
Ladrão não tem consciência,
Mulher não tem coração.
OLIVEIRA DE PANELAS, o Pavarotti dos Cantadores, assim é conhecido (de Panelas, Pernambuco). No Bar Savoy, onde Carlos Pena Filho escreveu seu famoso poema Chope
– Por isso no bar Savoy
O refrão é sempre assim:
São trinta copos de chope,
São trinta homens sentados,
Trezentos desejos presos,
Trinta mil sonhos frustrados.
Cantoria com Otacílio Batista, irmão de Dimas e Lourival. Ali, fui testemunha de uma cena inacreditável. E, na hora, lhe mandei esse bilhete
– Meu amigo Oliveira
Pare, sinta, escute e veja
Otacílio pegou 20
Quero que Deus me proteja
Mas nunca vi cantador
Roubar a própria bandeja
Pois no calor da peleja
Como quem bebe aguardente
Comeu o teu queijo frio
Bebeu o teu café quente
E o que era teu e dele
Ficou foi dele somente.
SAUDADE. É tema recorrente nas cantorias. Seguem, aqui, três belos exemplos de sextilhas. A primeira de Severino Pinto (de Monteiro, Paraíba)
– Essa palavra saudade
Conheço desde criança
Saudade de amor ausente
Não é saudade, é lembrança
Saudade só é saudade
Quando morre a esperança.
E as duas restantes de Antônio Pereira (de Livramento, Paraíba), conhecido como O Poeta da Saudade
– Saudade é um parafuso
Que quando na rosca cai
Só entra se for torcendo
Porque batendo não vai
Depois que enferruja dentro
Nem distorcendo não sai.
– Quem quiser plantar saudade
Primeiro escalde a semente
Plante num lugar bem seco
Onde o sol bata mais quente
Que se plantar no molhado
Quando nascer mata a gente.
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