O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso chega aos 92 anos de idade deixando um enorme legado ao Brasil e aos brasileiros. Um homem público que se empenhou na transformação do país e que se forjou como um intelectual que sempre soube entender as intensas transformações que varreram o mundo. Alguém capaz de enxergar além do nevoeiro que turva nossos olhos.

Da leitura do seu livro de memórias “Um Intelectual na política” (editora Companhia das Letras), depreende-se que se tivesse nascido em um país de larga tradição democrática seguiria a vida acadêmica sem dar o salto para a política e dificilmente chegaria à presidência da República. O regime ditatorial instalado em 1964 mudou a rota da sua vida ao interditar o debate e instalar um clima de caças às bruxas. O então jovem professor da USP vai para o exílio logo após o golpe, onde passa quatro anos, e é aposentado compulsoriamente pelo AI-5.

Com a academia garroteada, o debate e a produção intelectual se transferem para fora dos muros das universidades. Fernando Henrique funda o Centro Brasileiro de Análises e Planejamento (Cebrap), uma usina de efervescência e de aglutinação da intelectualidade nos anos 70. E vai se encontrar com o mundo da política propriamente dito quando Ulysses Guimarães e o deputado Pacheco Chaves batem às portas do Cebrap para convidar seus intelectuais para elaborar o programa do PMDB para a eleição de 1974. Quatro anos depois disputaria sua primeira eleição e 20 anos depois se elegeria presidente da República.

Quando aceita o convite de Ulysses já tinha 43 anos e era autor de uma produção invejável, sendo, talvez o cientista brasileiro de maior projeção internacional, entre a segunda metade das décadas de 60 e 70. 

Ler “Um Intelectual na Política” é revisitar um dos períodos mais ricos das ciências sociais no Brasil. É também entrar em contato com suas formulações originais no entendimento da sociedade brasileira e da própria América Latina. Dessa vasta obra, duas características se destacam: a pesquisa de campo e a análise histórico-estrutural.

Elas estão presentes no seu primeiro trabalho de fôlego, tema de sua tese de doutorado: “Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional – O Negro na Sociedade Escravocrata do Rio Grande do Sul” (editora Paz e Terra). Sua análise contesta a concepção dos modos de produção sucessivos (comunismo primitivo, escravismo, feudalismo e capitalismo). De acordo com essa tese, o escravismo no Brasil seria um modo de produção idêntico ao da antiguidade e foi sucedido pelo feudalismo. Essa concepção, com a qual Fernando Henrique rompe, era esposada pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros, do qual Nelson Werneck Sodré foi sua grande expressão intelectual. Tratava-se de uma leitura dogmática de Marx, esquematizada por Stalin em sua obra sobre o materialismo dialético e materialismo histórico, como se todas as sociedades tivessem uma mesma história e passado pelas mesmas etapas.

O lado inovador de Fernando Henrique foi entender a escravidão no Brasil a partir de uma análise histórico estrutural, daquilo que ela tinha de peculiar. Ou seja, o escravismo no Brasil inseria-se em relações sociais de produção capitalista, na qual o escravo era o capital fixo e seus exploradores eram, ao mesmo tempo, senhores de escravos e empreendedores. Esse modo de produção, similar ao do sistema de “plantation” do sul dos Estados Unidos, produzia para os mercados externo e interno.

Décadas depois, outro intelectual, Jacob Gorender aprofundaria a análise peculiar sobre o escravismo, definindo-o como um modo de produção específico, o colonial. Mas os dois coincidem na conclusão de que no Brasil a produção escravista se vincula ao mercado mundial, portanto ao capitalismo na sua fase mercantilista. 

A conclusão era lógica: ora, se o escravismo brasileiro se inseria nessa fase do capitalismo, não tinha sentido falar num Brasil de feudalismo, como entendiam intelectuais vinculados ao Partido Comunista Brasileiro. A ideia dessa corrente de um Brasil semifeudal e semicolonial desconsiderava a análise histórica. Para FHC, o grande produtor rural não podia ser enquadrado na categoria de latifundiário, bem como o trabalhador rural brasileiro não podia ser enquadrado na categoria do “camponês tradicional” tal qual os camponeses da Europa. Reconhece a existência de formas de exploração pré-capitalistas, mas num quadro de uma economia de mercado.

Assim, chegou a conclusões semelhantes às de Caio Prado Jr em sua obra “História Econômica do Brasil” (editora Brasiliense), a quem Fernando Henrique faz questão de dar crédito, por suas formulações inovadoras. E por falar em dar crédito, destaca a influência dos três pilares das ciências modernas – Karl Marx, Max Weber e Émile Durkheim – na sua formação como sociólogo.  Declaradamente assume-se como discípulo de Florestan Fernandes, responsável pela formação de toda uma geração de cientistas sociais.

No seu livro de memórias, o ex- presidente nos remete também ao grande debate sobre o papel da burguesia brasileira, discutida em sua tese de livre-docência, “Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil” (editora Civilização Brasileira), escrita em 1962 e onde reflete sobre a formação da sociedade industrial “de massas” e a formação do “espírito empresarial” para a formação do país.  À época a ideia hegemônica “atribuía a condição de oponentes das grandes empresas internacionais, à burguesia industrial, que além disso estaria disposta a fazer uma aliança com forças socialmente progressistas, o proletariado e os camponeses. Seria nossa revolução burguesa.”

Conclui que essa era uma visão ideológica, que não tinha anteparo na realidade. Sem negar a existência de empresários nacionalistas, como Ermírio de Morais, FHC se deu conta de que a maioria dos empresários brasileiros não estava em oposição ao “latifúndio” e ao “imperialismo”, como preconizava a esquerda hegemônica, e “tinham ligações com o capital agrário e se associava a empresas que viriam se chamar de multinacionais”.  Dela, portanto, não se podia esperar um papel revolucionário como o desempenhado pela burguesia europeia na passagem do feudalismo para o capitalismo.

Fernando Henrique se projetou internacionalmente já no seu exílio no Chile, a partir do livro escrito em parceria com o chileno Enzo Falleto, “Dependência e desenvolvimento na América Latina” (editora Civilização Brasileira), traduzido em quatorze idiomas e onde estuda as relações internacionais e o processo de desenvolvimento econômico e social na América Latina. Nas memórias queixa-se de ter sido, equivocadamente, considerado como “dependentista”, por causa dessa obra.

De fato, o foco do livro não é tanto a dependência, mas sim o desenvolvimento, ponto de partida para sua crítica ao pensamento oriundo da CEPAL (a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe criada em 1948 pela ONU e onde trabalhou durante seu período no Chile) que via a América Latina estagnada em função das relações de troca internacionais. O pensamento cepalino só concebia a possibilidade de crescimento na região a partir de um desenvolvimentismo autônomo. Mostra que a despeito da dependência das economias periféricas em relação às economias centrais, havia crescimento nessas regiões. 

Polemiza então com a “teoria de dependência” de Rui Mauro Marini, para quem o desenvolvimento na América Latina e países periféricos se dava à base da super exploração do trabalho e só seria possível superar o subdesenvolvimento pela ruptura revolucionária. Em particular critica a visão de Rui Marini que qualificava países como o Brasil de “sub imperialista”.

À concepção da revolução social como pré-condição para o desenvolvimento na América Latina Fernando Henrique contrapõe o seu conceito de “dependência associada”, no qual o capital nacional participa do processo de desenvolvimento de uma forma associada com o capital internacional e não em contraposição a ele. Em outras palavras: apesar da dependência, havia crescimento em países como o Brasil. Isso foi fundamental para entender o chamado “milagre econômico” do regime militar, fenômeno que as teses catastrofistas se recusavam a reconhecer.

A leitura de um “Um intelectual na política” nos põe em contato com um pensador não dogmático, que foge de análises simplistas ou alarmistas.  Assim, fez distinção entre fascismo e autoritarismo. A polêmica se dava em torno do caráter da ditadura militar. Para parte da esquerda o regime era fascista. O primeiro a reconhecer o caráter fascista da ditadura foi um brilhante intelectual comunista, Armênio Guedes. 

FHC chegou a outra conclusão. A ditadura era autoritária, não fascista, regime que pressupõe partido único. Não era a única diferenciação. No caso brasileiro, realçava, a ditadura manteve um mínimo de institucionalidade, com a existência de um partido de oposição e de um parlamento mesmo que usurpado em suas prerrogativas. Sim a ditadura cassava parlamentares, mas não suprimiu o parlamento, bem como não suprimiu totalmente as eleições.

Não se tratava de uma mera discussão acadêmica. Da análise concreta da natureza do regime se abstraia o caminho a seguir e a possibilidade de realizar uma oposição realista em uma estratégia de acúmulo de forças por meio de uma “guerra de posições” na sociedade. 

O debate se dá no momento em que a esquerda armada estava dizimada e MDB após praticamente se autodissolver nas eleições de 1970 ressurge das cinzas com a retumbante vitória nas eleições de 1974. 

A forma como se deu a superação da ditadura, implodida a partir do próprio colégio eleitoral que havia criado e pela combinação da via institucional com a pressão das ruas e das fábricas, confirmou sua análise dos meados dos anos 70. Vamos assistir nos anos seguintes as greves do ABC, as vitórias do MDB em 78 e 82, a campanha das diretas e a eleição de Tancredo Neves. 

Aí Fernando Henrique Cardoso já não é apenas o intelectual da academia que interpreta como poucos a realidade, alguém que estuda as características estruturais da sociedade brasileira, dos dilemas que herdamos do passado e dos possíveis caminhos para sua superação. É sujeito da história em uma trajetória iniciada em 1978, quando foi eleito suplente do senador Franco Montoro. 

Quem ler o livro de memórias de Fernando Henrique vai concordar com o título do último capítulo: Uma vida bem vivida. 

Hoje o intelectual não dogmático é um homem público de mentalidade aberta e livre de tabus, para quem não há barreira intransponível quando estão em jogo a democracia e os interesses do país.                                                       

Ao presidente, parabéns pelos 92 anos de uma bela vida dedicada ao Brasil e aos brasileiros.