Atrizes

Atrizes

“Há males de que não devemos nos livrar porque nos protegem de males muito maiores”, escreve Proust em certo momento de “À procura do tempo perdido”. Talvez seja o caso de aplicarmos tal conselho à fábula ético-estética do filme “A substância” (em cartaz nos cinemas), o último longa da diretora e roteirista francesa Coralie Fargeat (1976). O enredo é simples, mas o filme é complexo, pois tanto estamos no domínio da realidade quanto do teratológico, isto é, no enfrentamento da monstruosidade e suas metamorfoses, com a indispensável colaboração de efeitos especiais. Se você não tem estômago, não assista, pois, em certos momentos, estará diante da própria náusea. 

“A substância” não é para delicados. Alguns até dirão que a diretora carregou nas  tintas e passou do ponto, pode ser, mas é essencial valorizarmos a visualidade obsessiva da esterilidade do branco e da luz e da ofuscação vermelha do sangue da carne dilacerada, do corpo, por assim dizer, barbarizado pela tecnologia. De onde vem e por que vem essa vitrina de horror? Vem do temor à velhice num mundo midiático em que o capital requer e exige, de par com a beleza eterna dos corpos (em especial, os das mulheres), um lucro incessante. Um rigor militarizado e uma ganância sem limites se aliam para armar o teatro da “perfeição”, cujos shows de sonho e fantasia manipulam o desejo das audiências milionárias da TV. É preciso dar literalmente sangue para que a beleza (ou pelo menos uma certa visão dela) possa saciar o desejo de prazer que vive em corações e mentes das multidões visíveis ou invisíveis. 

Na fábula moral de Coralie, já não se busca fugir da velhice em busca de uma utópica eterna juventude. A fuga ao envelhecimento é uma corrida para se estar “on” e produtivo, para se ganhar dinheiro, não se sair de cena e não ser descartável. É por isso que a protagonista (atriz e dançarina), uma vez despedida do emprego por estar envelhecendo, entrega-se à trágica ilusão tecnológica de voltar a ser jovem e bonita. Para essa personagem, a diretora escalou a bela Demi Moore, que a encarna com maestria, e a não menos bela Margaret Qualley, que faz a sua versão rejuvenescida. E aqui adaptemos o conselho de Marcel Proust do início deste artigo: o “mal” da velhice poderia proteger a personagem dos males que sua opção pela “substância” vai tragicamente desencadear.

A fantasia fantasmagórica e o pesadelo criados por Coralie Fargeat naturalmente dialogam com a biotecnologia e a sociologia do corpo. O acesso à “substância”, por parte da personagem, misterioso e despojado de qualquer contato pessoal, parece sugerir um certo limiar e um resto de timidez entre a realidade humana e os avanços biotecnológicos, se não é também uma oportuna alusão kafkiana. O fato é que nosso tempo é marcado por um assombroso avanço tecnológico, agora coroado pela autonomia da Inteligência Artificial. Sobre o emprego da tecnologia, faz alguns anos, o sociólogo Manuel Castells, numa entrevista a uma revista brasileira, foi incisivo (cito de memória) e rasgou os melindres e entraves éticos: toda tecnologia sempre é usada! Ou seja, uma hora ou outra, ela sai do limbo científico e, para o bem ou para o mal, encarna-se na realidade.

Por sua vez, muito a propósito, o antropólogo David Le Breton, em seu livro “A sociologia do corpo”, reflete: “Hoje, os feitos da medicina e da biologia (transplantes, transfusão de sangue, próteses, manipulações genéticas, inseminação artificial, etc.) abriram caminho para novas práticas para as quais é anunciado um futuro de prosperidade. Elas deram ao corpo o valor de um objeto cujo preço é inestimável diante da demanda crescente”. No filme, esse valor pecuniário tanto está nos corpos que podem se transfigurar com a “substância”, criando uma versão rejuvenescida, quanto nos corpos femininos naturalmente jovens e belos que se transformam em lucro irresponsável. 

Em suas imagens cruéis e grotescas (vísceras, tumores, feridas, deformações e monstruosidade), de par com a beleza e a suposta perfeição de formas femininas extasiantes, “A substância” nos estimula a pensar não só no corpo como arena de inscrições sociais e palco tecnológico, mas também na substância metafísica dos valores que nos tornam humanos, sem falar na polarização dialética entre o interior do corpo e seu exterior. Para tanto, vale-se de apurada sensibilidade, de imagens exuberantes e de signos que perturbam nossos hábitos sociais e funções biológicas, a exemplo do sangue que, na cena final, fora do corpo e tragicamente compartilhado, não é mais um ente biológico e funcional, mas um fluido que cega e um horror que borra e destrói a realidade.