Os compositores deixaram de exercer a função de diretor musical bem no início do século XX, quando as duas ocupações tomaram rumos inexoravelmente diferentes. Uma era percebida como espiritual e idealista, a outra pertencia muito obviamente ao mundo material do poder e da riqueza. Permitia-se aos compositores regerem em ocasiões solenes e quando estavam na miséria ou criativamente inativos. Sergei Rachmaninoff (1873-1943) e Paul Hindemith (1895-1963), Igor Stravinsky (1882-1971) e Benjamin Britten (1913-1976) impunham respeito com uma batuta sem jamais ter alcançado posições de autoridade. O compositor-regente como uma vocação conjunta expirou com Gustav Mahler (1860-1911) e Richard Strauss (1864-1949). Um punhado de diretores musicais insistia em compor, mas nem Wilhelm Furtwängler (1886-1954) nem Victor de Sabata (1882-1967), Rafael Kubelik (1914-1996) ou André Previn (1929-2019) eram remotamente tão interessantes na pauta quanto no pódio.

Paradoxalmente, como relata o crítico inglês Norman Lebrecht [*], foi na vizinhança de Wall Street que o compositor-regente praticou seu último ato de resistência antes de se extinguir. Nova York se tornou, pela única vez em sua história, uma meca para músicos sérios entre 1958 e 1977, quando dois criadores testaram suas teorias radicais junto a um público bem-disposto. Um acreditava fervorosamente que todos podiam ser levados a amar a música – isto é, a amá-lo. O outro sustentava com igual vigor que as pessoas inteligentes podiam ser curadas do vício da melodia e convencidas a aceitar um domínio ascético – o dele próprio. Ambos deixaram uma marca indelével numa nova geração de ouvintes, e ambos acabaram por deixar seus postos ao descobrir que ser um diretor musical era sufocar sua preciosa musa.

A mais antiga orquestra dos Estados Unidos, a Filarmônica de Nova York, nunca prendeu a atenção do país por muito tempo. Os episódios de glória com Mahler e Arturo Toscanini (1867-1957) foram evanescentes, e rapidamente seguidos por tediosos períodos com regentes medianos. A Filarmônica conservou seu lugar entre as Cinco Grandes orquestras com base em sua magnitude corporativa, não no mérito artístico. De 1922 a 1956, a orquestra foi administrada pelo principal agente de concerto dos Estados Unidos – Arhur Judson, que embolsava de 10 a 15% dos cachês – e usada como vitrine para solistas e regentes dele. Os músicos da orquestra não tinham nenhum poder de decidir o que executavam e com quem. As decisões eram tomadas por um conselho de diletantes e implementadas por seu administrador. Tão frustrados que esporadicamente se mostravam violentos, os músicos ganhavam a temível reputação de esfolar regentes de pele tenra. Junto com os ainda verdes e os meramente esperançosos, vários excelentes regentes foram tratados de maneira brutal e outros se precaveram e ficaram longe. O gueto da altura cultura de Manhattan, protegido das massas por guarda-costas armados, passou a considerar a Filarmônica de Nova York – juntamente com o Metropolitan Opera – como culturalmente irrelevante. Em quase 120 anos, a orquestra jamais designara um regente americano, nem buscara ampliar sua base em meio ao caldo de culturas que constituía Nova York.

Na altura de 1957 a Filarmônica estava se desintegrando como unidade executante de música e perdendo largas fatias de audiência. Medidas radicais faziam-se necessárias, e o conselho correu para o centro da cidade em busca de estrelas de apelo. O alvo foi um jovem polímata que de outra feita eles tinham posto para fora da Filarmônica por razões pessoais. Leonard Bernstein era agora um campeão de bilheteria na Broadway. Havia feito grande sucesso com On the Town e explodido com Candide, mas estava prestes a quebrar todos os recordes com West Side Story, em que transplantara Romeu e Julieta para o meio de gangues de imigrantes hispânicos, de que o Carnegie Hall parecia mais distante que a Lua. As ambições pessoais de Bernstein, no entanto, continuavam intelectuais, e quando os diretores da Filarmônica apareceram com uma oferta quando ele ainda estava realizando West Side Story, agarrou-a no ato. “Pela primeira vez em nossa história temos uma ponte sólida entre a juventude por todo o país e a Filarmônica”, alegrou-se um violinista da orquestra.

Com 39 anos de idade e elegantemente vestido, Bernstein não demorou a se tornar uma personalidade da televisão, conversando sobre música nos termos mais simples; mas sua experiência orquestral era minúscula. Havia feito temporadas isoladas com a Sinfônica de Nova York e a Filarmônica de Israel destroçada pela guerra e regido como convidado aqui e ali; não conseguira, contudo, um emprego estável. Formado pelas mãos rígidas de Fritz Reiner (1888-1963) e Serge Koussevitzky (1874-1951), surgira no mercado durante a caça às bruxas de Joseph McCarthy (1908-1957), quando suas simpatias esquerdistas, inclinações homoeróticas e origem judaica, praticamente o excluíram do mercado de trabalho dos Estados Unidos. Koussevitzky lhe implorou que mudasse de nome, se batizasse, se casasse e mudasse de conduta, mas Bernstein continuou como era, e sua franqueza lhe custou qualquer chance de herdar a Sinfônica de Boston, ou de avançar além da condição de aprendiz na Filarmônica de Nova York.

Bernstein estampou a primeira página do New York Times aos 25 anos por entrar em cena, sem ensaio, na condição de membro aprendiz, para substituir o regente mozartiano Bruno Walter (1876-1962), acometido de gripe, num programa nacional de rádio de domingo à tarde no dia 14 de novembro de 1943. “O Sr. Bernstein precisou de algo próximo da genialidade para tirar pleno partido da oportunidade que teve” – declarou o editorial do New York Times, e o feito lhe valeu cobertura maciça da mídia. Quase 15 anos inseguros iriam se passar, porém, antes que conseguisse sua própria orquestra – a mesmíssima Filarmônica de Nova York.

Em 1946, Bernstein conduziu uma ópera pela primeira vez, sendo essa a première estadunidense de Peter Grimes, de Britten. No mesmo ano, Toscanini o convidou para apresentar-se em dois concertos com a Orquestra Sinfônica da NBC. Em 1949, ele conduziu a première mundial da Turangalîla-Symphonie de Olivier Messiaen (1908-1992), em Boston e Koussevitzky morreu dois anos depois. Em 1954, Bernstein dirigiu a Filarmônica de Nova Iorque na première mundial da Sinfonia Nº 2 de Charles Ives (1874-1954). O compositor já velho, não pode ir ao concerto, mas escutou-o no rádio com sua esposa, Harmony. Ambos ficaram maravilhados com o entusiasmo em que sua sinfonia foi recebida.

Lenny, como era carinhosamente chamado, foi nomeado o maestro principal da Filarmônica de Nova Iorque em 1957, substituindo Dimitri Mitropoulos (1896-1960), posto que ocupou até 1969 – entretanto, continuou conduzindo a orquestra e fazendo célebres gravações durante o resto de sua vida. Popularizou-se nos Estados Unidos também por sua série de 53 concertos televisionados: os Concertos para a Juventude.

Em 1959, Bernstein realizou uma turnê com a Filarmônica de Nova Iorque pela Europa e União Soviética. O ponto alto da turnê foi uma performance da Quinta Sinfonia de Dmitri Shostakovich (1906-1975), na presença do compositor, que no fim do concerto, foi ao camarim parabenizar Bernstein e os músicos. Em 1960, começou seu ciclo completo de gravações em estéreo de todas as sinfonias de Mahler, com o apoio da viúva do compositor. Seis anos depois, ele fez sua estreia com a Ópera Estatal de Viena, conduzindo Falstaff de Giuseppe Verdi (1813-1901). No começo de 1970, conduziu a Filarmônica de Viena, gravando ciclos sinfônicos de vários compositores. A première mundial da sua Missa ocorreu em setembro de 1971, na abertura do Centro de Performances Artísticas John F. Kennedy em Washington.

Bernstein chegou a ser convidado para ocupar a cadeira de professor de poesia na Universidade de Harvard, em 1973. Seis anos depois, ele fez sua primeira e única performance com a blindada Filarmônica de Berlim, executando a Nona Sinfonia de Mahler. Em 1985, conduziu uma gravação completa de West Side Story pela primeira e única vez. A gravação foi muito criticada por ter no elenco cantores líricos – entretanto, foi um bestseller. Em 1989, Bernstein novamente conduziu seus musicais, mas com cantores da Broadway. 

No Natal daquele mesmo ano, Bernstein conduziu a Nona Sinfonia de Ludwig van Beethoven (1770-1827) em Berlim, celebrando a queda do Muro de Berlim. O concerto foi televisionado para mais de 20 países e estima-se que mais de 100 milhões de pessoas assistiram. Nessa ocasião, Bernstein modificou o texto da Ode à Alegria de Friedrich Schiller (1759-1805), substituindo a palavra Freude (Alegria) por Freiheit (Liberdade).] Na introdução ao concerto, ele disse que “tomou a liberdade” de fazer isso e que tinha “certeza de que Beethoven está nos abençoando”.

Sua última apresentação pública foi em Tanglewood, no dia 19 de agosto de 1990, com a Orquestra Sinfônica de Boston. Bernstein morreria de infarto agudo do miocárdio causado por um mesotelioma, apenas cinco dias depois de se aposentar. Suas gravações, boa parte pelo selo Deutsche Grammophon, permanecem como grandes referências. Seus vídeos, absolutamente contagiantes – como este abaixo, em que ele rege apenas com os olhos o final da Sinfonia Nº88 do seu (e meu) amado Joseph Haydn (1732-1808). A música corria intensamente em suas veias e o fazia vibrar com a pureza de uma criança.

 

[*] LEBRECHT, N. The Maestro Myth: Great Conductors in Pursuit of Power. London: Simon & Schuster, 1991.