Na semana passada (em 13/10/2024), o deputado federal Marcel van Hattem reiterou, na tribuna da Câmara, denúncia que havia feito sobre o policial federal Fabio Alvarez Schor que forjou provas contra um assessor para assuntos internacionais do governo Bolsonaro, Felipe Martins. Preso por ordem do ministro Alexandre de Moraes, em 08/02/2023, porque (segundo informação desse policial) teria viajado, aos Estados Unidos, para planejar golpe militar. Um ano e meio depois se comprovou que dito assessor nunca saiu do Brasil. Um ano e meio de sua vida jogado fora, nessa prisão injusta, por conta de uma afirmação falsa. E ninguém pagou por isso. Nem o ministro AM. Nem o policial, a serviço de partidos políticos.
Antes, em 14/08/2024, o deputado já advertira que se algo lhe acontecesse as responsabilidades caberiam à Polícia Federal. Aconteceu; e, pior, com a cumplicidade do Supremo. Tanto que hoje, por conta de uma denúncia sem nexo, de que ofendera um policial dizendo ser falsa uma afirmação que fez (mesmo sendo verdadeira, logo se viu), é processado pela “Divisão de Combate por Crimes Contra a Corrupção Financeira” da Polícia Federal. Quando nenhum ato há, nesse caso, envolvendo dinheiro. Apenas afirmou, reitero, que a Polícia Federal fez acusações falsas, o que é verdade. Pior, sabendo serem falsas. E foi bater num departamento de “Lavagem de Dinheiro”? É como se o governo tivesse escolhido a dedo alguém confiável, na Polícia Federal, para o processar (e condenar, se possível), sem se preocupar com qual cargo ocupava.
Curioso é ter o Supremo sorteado, como relator do processo, o ministro Flávio Dino. Até pouco, ministro da Justiça de Lula. Alguém comprometido com o governo. Um sorteio muito estranho. O deputado requereu seu código-fonte, para saber como ocorreu; e o Supremo, para este caso, decretou sigilo. Mas sigilo, como?, amigo leitor. Um sorteio feito por computador? Qual a razão plausível de ser imposto sigilo? A menos que não tenha sido feito por computador nenhum, é inevitável concluir. Vai ver foi só uma escolha partidária. Com a caneta, e não pela máquina. Deixando o Supremo, mais uma vez, em situação constrangedora.
Talvez não por acaso dito deputado é relator da PEC que limita decisões monocráticas, no Supremo. Como se nossa mais alta Côrte avisasse, aos parlamentares brasileiros, “não se metam conosco, que podemos acabar com vocês”.
A essa altura, vale examinar questões teóricas por trás dessa violência. E começo logo dizendo que “imunidades parlamentares”, usando palavras do professor de Direito Público Georges Burdeau (Traité de Science Politique), são “privilégios que garantem o livre exercício do mandato”. E correspondem à proteção contra atos estranhos às atividades parlamentares, como crimes comuns (“inviolabilidade”); ou ao cumprimento específico de suas funções (“irresponsabilidade”), como o direito de dar “opiniões, palavras e votos”. Um direito indissociável da independência que deve ter, o parlamentar, no exercício do mandato.
É assim em todos os outros países. TODOS. Só para referir alguns Espanha (art. 71 da Constituição), França (art. 26), Itália (art. 68), Japão (art. 51). No caso da Alemanha (art. 46), parlamentares respondem apenas quando ocorra “injúria infamante” (o que claramente não houve, em nosso caso de agora).
Como curiosidade, em Inglaterra e Estados Unidos, o mesmo direito que tem o parlamentar de no púlpito dizer o que quiser, sem ser processado, tem também qualquer cidadão, inclusive contra os do poder, se estiver em local público e com os pés fora do chão (“púlpito popular”) – devendo por isso falar em cima de bancos, caixões, prosaicos lenços ou apenas dando pulos.
Nos negros anos da Ditadura, o Governo Militar estabelecia limites aos direitos previstos na Constituição. Como o de não pôr em risco a Segurança Nacional (sendo por isso vedado falar em prisões arbitrárias, torturas, desaparecimentos ou mortes). Mas quem decidia o que seria uma ameaça a dita Segurança Nacional?, eis a questão. O próprio Governo Militar ou seus agentes, claro. Em resumo, e como havia limites fixados pelo próprio Governo Militar, estava (também por isso) caracterizada uma Ditadura. Ponto final.
Problema é que no Brasil, agora, está acontecendo o mesmo. A regra de nossa Constituição atual de 1988, com a mesma redação das anteriores (a de 1946, art. 44; e a de 1967, art. 34), não admite nenhum limite ao direito de falar dos parlamentares. Basta ler:
“Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.
O ministro Dino, em decisão monocrática ? único país do mundo que admite isso, um juiz decidindo sozinho em lugar da Côrte Constitucional ?, inventou de “reinterpretar” a Constituição. Para afirmar que está, na Constituição, o que lá não está. Que ela diz o que não diz. Porque tal regra da ausência de limites não interessa ao governo nem a seus correligionários, na volúpia por grandeza. Nem é tolerada pelo todo-poderoso Supremo, em seus delírios de mandar em tudo. Como o “Grande Irmão” de Orwell (no livro 1984). O vício de estabelecer limites, como nos negros tempos da Ditadura, infelizmente se repete. E continua tornando fantasia o direito de falar. Só que, no lugar do Governo Militar, quem decide agora o que pode ou não ser dito é o próprio Supremo. Em qualquer país decente, seria caso de impeachment do ministro Dino.
A Constituição é claríssima ? o direito de falar, no parlamento, é livre. Só que o Ministro Dino estabelece limites. Com o silêncio cumplice dos outros 10 ministros da Casa, é lamentável. Não há limites, na letra da Constituição. Mas quem interpreta a Constituição é o Supremo. E, portanto, numa rotina que vem se repetindo, vale o que ele disser que vale. Segundo palavras do ministro Dino, Senadores e Deputados não podem usar palavras que “ultrapassem a imunidade parlamentar”. Mas onde está esse limite na nossa Constituição?, senhores.
O risco desse tipo de posição é que, em tese, qualquer declaração pode ser considerada como fala sem proteção da imunidade parlamentar. Qualquer uma. Antes era o Governo Militar, com a censura; agora o Supremo, com seu poder infinito. Antes a Segurança Nacional; agora, o que o Supremo quiser. Antes a Ditadura; agora, a mesma Ditadura. O mesmo roteiro. O mesmo vício. A mesma trama vergonhosa. Rasgando a Democracia. Hoje, é o deputado van Hatten. Amanhã, poderá ser qualquer um de nós que por acaso diga o que o Governo ou o Supremo não gostem.
Parabéns, caro José Paulo!
Em nossa República macunaímica, manifestações como esta e de intelectuais com a sua grandeza são fundamentais para o retorno do país à normalidade democrática.
Abraço, Sérgio A.