Camões entra cedo em nossas vidas pela mão invisível e onipresente da cultura. De minha parte, tive o privilégio de ter sido aluno, no Colégio de Aplicação da UFPE, de um dos grandes estudiosos do poeta no Brasil: refiro-me ao admirável e saudoso mestre Rubem Franca, um enlouquecido de Camões, que, com apenas treze anos de idade, já lera e praticamente decorara “Os Lusíadas”, possuidor que era de impressionante memória e aguda inteligência, passando a levar, dentro de si, como um órgão vital, a epopeia camoniana. Essa paixão continuaria vida afora, dividida com a medicina e o magistério de História e Geografia. Suas aulas, nas quais por vezes recitava o poeta, eram de fato mágicas, e sua devoção ao gênio português, um fervor quase religioso.
No entanto, esse “meu Camões”, tão logo encontrado, por algum tempo submergiu, só emergindo anos depois. Mas Camões algum submerge ou naufraga, até porque, como reza a sua legendária biografia, ao certa vez escapar de um naufrágio, ele teria nadado com um só braço, com o outro salvando o manuscrito do seu poema épico. Uma cruel ironia: salvar do mar um poema embebido de mar.
Mario Quintana (1906–1994), numa obra-prima de síntese, nos legou este extraordinário poema: “Camões, / Seu nome retorcido como um búzio. / Nele sopra Netuno”. Naturalmente, Quintana refere-se ao Camões de “Os Lusíadas”, que, com sua epopeia em dez cantos, escrita em 8.816 decassílabos, confunde-se com o esplendor da nação portuguesa à época das Grandes Navegações. Com efeito, como assinala Joaquim Nabuco, em famoso ensaio, “‘Os Lusíadas’ são, como obra de arte, o poema da pátria, a memória de um povo”. Todavia, há que se fazer uma necessária distinção, como bem pondera o poeta e ensaísta luso-brasileiro José Rodrigues de Paiva, pois equivocadamente alçaram Camões a um patamar político: “[…] ideologias de Estado, felizmente agora já ultrapassadas, apodaram Camões de ‘o poeta da raça’, ‘o poeta do Império’. Fizeram dele, então, o poeta ‘oficial’ que ele nunca foi” (“Celebrando Camões” 2. ed. Recife: UFPE; Associação de Estudos Portugueses Jordão Emerenciano, 2016).
Além do marítimo e épico, há um outro Camões tão gigantesco quanto o seu Adamastor e tão vivo quanto aquele de sua enciclopédica epopeia. É o Camões lírico: o dos sonetos, o das odes, o das elegias, o das sextinas, o das redondilhas. É o Camões que navega pelo amor, “fogo que arde sem se ver”, e de versos como: “Busque, Amor, novas artes, novo engenho / para matar-me, e novas esquivanças; / que não pode tirar-me as esperanças, / pois mal me tirará o que não tenho […] Que dias há que na alma me tem posto / um não sei quê, que nasce não sei onde, / vem não sei como, e dói não sei porquê”.
Ao leitor contemporâneo, será interessante saber que esse Camões lírico escreveu versos que foram, originalmente, apreciados como música! É o que nos informa Maria de Lourdes Saraiva, organizadora da “Lírica Completa” do poeta (Cf. Vila da Maia: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1980): “É bom ter presente que muitas vezes os versos (e é esse especialmente o caso das redondilhas) foram escritos não para serem lidos, mas para serem ouvidos, e até para serem cantados […] Os valores que presidiam a essa mensagem musical e poética — ritmo, argúcia, malícia, sátira, ambiguidade, alusão a factos, pessoas e situações, agravo, doçura, melancolia, protesto, tudo se perde com o emudecimento da música a cujo som era cantada”. Ainda assim, com tantas perdas, quanta riqueza e quanto encantamento!
No Brasil, tanto o Camões lírico quanto o épico jamais deixaram de estar presentes. São inúmeros os autores que o amaram ou foram por ele influenciados. É o que nos prova, de forma cabal, a obra “Camões e a poesia brasileira” (Rio de Janeiro: Departamento de Assuntos Culturais/MEC: UFF: Fundação Casa de Rui Barbosa), de Gilberto Mendonça Teles (1931–). Nessa exaustiva pesquisa, o crítico goiano ainda aborda o que chamou de “mito camoniano”, mostrando-nos como Camões vive em nossa cultura popular, em nossas sátiras, em nosso humorismo.
É do livro de Gilberto Mendonça Teles que pinço uma estrofe de curioso soneto em homenagem a Camões. Curioso porque escrito com versos de 19 sílabas! A autoria é do pernambucano Austro-Costa (1899-1953). Diz ela: “Camões: teu gênio, que enche o Universo, tal qual teu nome que, alto, ressoa / de boca em boca, de peito em peito — símbolo e orgulho de tua Raça — / se um te fez triste, pois te fez poeta — guerreiro e poeta — soldado em Goa, / e outro se libra, através dos tempos, aos céus da Glória cheia de Graça!”.
A despeito desse nome que “alto ressoa, de boca em boca, de peito em peito”, o Camões que vemos em esculturas e pinturas não passa de uma ficção, pois nunca foi retratado. Seu rosto é uma invenção do Romantismo, conquanto se saiba que ele, de fato, perdera um olho. Faltando-nos a sua efígie (uma imperdoável lacuna do destino), é de se pensar que tão imenso poeta não poderia ficar sem uma face. Criaram-na. E ganhou vida. Tem algo de poético esse destino póstumo, tem algo de profunda homenagem coletiva o soerguimento desse rosto. Viva Camões!
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