Pode-se dizer que a sociologia e as massas nasceram juntas no século XIX. Como se sabe, Auguste Comte (1798–1857) foi o “pai” da nova disciplina, muito embora Émile Durkheim (1858–1017) também seja considerado um outro “pai”. Naturalmente, não temos qualquer competência para pacificar essa disputa de paternidade. Desde então, diversos autores se debruçaram, cada qual a seu modo e com seu viés, sobre as massas como fenômeno social, histórico ou psicológico. Uma lista desses autores inclui, de pronto, nomes como Gustave Le Bon, Gabriel (de) Tarde, Freud, Gramsci, Elias Canetti, Ortega y Gasset, Wilhelm Reich e Edgar Morin. Num trocadilho burlesco, podemos dizer que tais pensadores meteram a mão na massa…, e com exemplar proveito.
Mas é em parceria com o polímata Gustave Le Bon (1841–1931) que desejamos fazer uma ponte com as redes sociais de nosso tempo. Em 1895, o genial francês lançou um ensaio que logo se tornou um clássico traduzido em todo o mundo, “Psicologia das multidões”. Para se ter uma ideia da abrangência da sua análise, mencionemos que o autor a dividiu em três grandes “livros”. O primeiro, intitulado “A alma das multidões”, em que analisa subtemas como sentimentos, moralidade, imaginação e até “formas religiosas de que se revestem todas as convicções das multidões”. No segundo livro, denominado “As opiniões e as crenças das multidões”, trata de aspectos como tradições, instituições políticas e sociais, instrução, imagens, fórmulas e dos condutores e da variabilidade das massas. Finalmente, o terceiro livro cuida da “Classificação e descrição das diversas categorias de multidões”, a exemplo das “criminosas”, das “eleitorais” e das “assembleias parlamentares”. Hoje, suspeitamos, Le Bon incluiria um novo tipo: as virtuais.
Perdão se nos estendemos em revelar a estrutura da obra, mas isso pode dar uma ideia de sua grandeza. É dessa grandeza que pretendemos extrair um pouco de luz (desencavada no primeiro “livro” do ensaio) para iluminar a psicologia das redes sociais. A nossa hipótese é a de que Le Bon tem muito a nos ensinar, sobretudo se considerarmos as redes sociais não só um fenômeno de nossa sociedade de massas, mas elas próprias, as redes, como um novo tipo de massa.
Um razoável postulado inicial de Le Bon é que “O indivíduo na multidão adquire exclusivamente, por causa do número, um sentimento de poder invencível, que lhe permite ceder a instintos que, sozinho, teria forçosamente refreado”; a “multidão anônima e consequentemente irresponsável” faz desaparecer a responsabilidade. Nas redes sociais, embora o anonimato seja eventual, dá-se algo parecido: seguidores e seguidos sentem-se empoderados e podem se manter coesos entre si, formando inúmeras submassas temáticas. No mais, como encontramos nas multidões de carne e osso, há um contágio mental. O que está em jogo, como escreveu nosso autor, é uma “sugestionabilidade” mútua. Nas massas ou nas redes, observamos a “espontaneidade, a violência, a ferocidade e também os entusiasmos e os heroísmos dos seres primitivos”.
Nas multidões, numa espécie de regressão filogenética, Le Bon enfatiza que tanto encontramos o “selvagem” como a “criança”; daí características como a “impulsividade, a irritabilidade […] a ausência de espírito crítico”. No caso das redes sociais, podemos acrescentar que não há só a ausência de espírito crítico, mas, o que talvez seja pior, a constante presença de um falso espírito crítico! Com perspicácia, ao debater o tema da sugestionabilidade, dos equívocos sobre um fato concreto, o autor destaca, num hábil paradoxo, que “Os acontecimentos mais duvidosos são certamente os que foram observados pelo maior número de pessoas”! O mesmo ocorre na similar predisposição que milhões de usuários das redes sociais têm de logo acreditarem no que leem, sempre pressurosos em comprarem gato por lebre e por enxergarem como verdade o que não passa de fantasia e “fake news”.
Tanto nas massas quanto nessas novas “multidões” que são as redes sociais, observamos que o indivíduo se torna “[…] insensível às nuances, vê todas as coisas em bloco e não conhece transições”. Eis uma das razões pela qual as redes levam água ao moinho da polarização política: faltam-lhes o sentido de distinção, o refinamento da percepção, o já citado espírito crítico. Por toda parte, fantasmas! Le Bon não tarda a ir ao ponto, o mesmo que hoje testemunhamos multiplicado pela tecnologia: “Nas multidões, o imbecil, o ignorante e o invejoso se liberam de seu sentimento de nulidade e de impotência, substituído pela noção de uma força brutal, passageira, mas imensa”.
Aprofundando sua análise de forma ainda mais arguta, o sociólogo e o psicólogo que coabitam no pensador francês nos fazem ver o fenômeno subjacente: “Associação de coisas dessemelhantes que possuem entre si apenas relações aparentes e generalização imediata de casos particulares, tais são as características da lógica coletiva”. Nessa linha, quanto às redes, diz a neurocientista Suzana Herculano Houzel: “O que define as ditas redes sociais é o passo rápido de conteúdos rasos num poço sem fundo de diversão e às vezes até informação, mas quase zero de conhecimento” (“Folha de S.Paulo”, 10/01/25).
Eis, amigas e amigos, Gustave Le Bon saltando sobre quase um século e meio para nos ajudar a ver melhor o espírito voluntarioso, simplista e problemático das redes sociais. É justo que peçamos muitos “likes” para ele!!!
comentários recentes