O ensaio “Políticas do encanto: extrema direita e fantasias de conspiração”, de Paolo Demuru, lançado em 2024, foca menos no diagnóstico da conjuntura política do que no modo como devemos enfrentar os extremistas. Dessa forma, vem iluminar um ponto cego da discussão. Aliás, já temos diagnósticos demais. O que não temos é uma eficaz estratégia de diálogo, até porque ficamos na mesmice de um confronto que, em síntese, não faz mais que afastar os próprios interlocutores. É preciso ir além do lugar-comum de que a racionalidade está do lado dos democratas e da esquerda em geral. Falta-nos uma predisposição cordial, envenenados que somos todos pelo discurso de ódio das redes sociais. Caímos, assim, numa tática que favorece o adversário ou, no mínimo, deixa o jogo empatado. Urge uma autocrítica, e esta é uma das instigantes facetas do livro.
Como Doutor em Semiótica, o professor Demuru, docente da Pós-graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, sabe do que está falando: da captura ou criação de um novo sentido. Donde nos adiantar que “[…] se queremos mudar a realidade, precisamos mudar os trilhos da imaginação social, reconquistar a fantasia, inventar e semear histórias, outras histórias”. Enfim, é de imaginação que precisamos, e não só de uma racionalidade que se quer “suprematista”, incapaz de perceber os possíveis “núcleos de verdade” que há no pensamento alheio, sobretudo se estes estão misturados a uma boa dose de fantasia. Essa “fantasia” é, para muitos líderes extremistas, a exemplo de Javier Milei e Bolsonaro, uma questão de identidade e de estilo, daí não hesitarem em lançar mão de memes, trolagem e escárnio.
Segundo Demuru, há que prestarmos atenção ao que torna exitosos os populismos conspiratórios do século XXI. Eles suspeitam que certas elites político-econômicas planejam uma ditadura planetária. Defendem que há um “marxismo cultural” (“um cavalo de batalha de Javier Milei nas eleições argentinas de 2023”), em que “[…] intelectuais de esquerda estariam subvertendo os valores tradicionais do Ocidente cristão para promover o liberalismo, o multiculturalismo, os maus costumes e a ‘ideologia de gênero’”. Tais extremistas também viram e disseminaram conspirações na pandemia da Covid-19 e criaram grupos como o QAnon. Enfim, todos capturados por “contos maravilhosos, magias, feitiços”… Como sustentáculo dessas crenças paranoicas, o autor aponta um tríplice alicerce: “Nada é como parece. Nada acontece por acaso. Tudo está conectado”. Assim, “O conspiracionismo é uma infinita caça ao tesouro […]”. Os “tesouros”, claro, vão se substituindo uns aos outros e, a rigor, nunca estão lá.
Apesar da percuciente análise do que se pode chamar o “feitiço extremista”, o ponto alto do ensaio, como já insinuamos, é a advertência de que se há de mudar a postura de combate, pois “[…] não estamos diante de zumbis, robôs ou fantoches teleguiados, que agem sem saber o que querem ou o que estão fazendo. Essa é uma visão arrogante e elitista […]”. O professor Demuru separa, então, o joio do trigo, pois: “O problema não é o transe em si [também haveria transes e fantasia nas esquerdas], mas o que está por trás dele: um discurso autoritário e excludente, que execra o Estado Democrático de Direito; preza o supremacismo dos homens brancos, a misoginia […]”, etc., etc.
Para desconstruir todo esse discurso, todas essas narrativas, é preciso fazer uma autocrítica, e não agir apenas com base no lógico e no ilógico, uma vez que “[…] um discurso [como é frequente] baseado em estratégias cognitivas e argumentações lógico-jurídico-racionais nada pode contra um discurso fantástico e maravilhoso, que cativa, encanta, envolve e contagia”. Como bem observa o autor, “[…] as pessoas resistem em mudar de ideia com base em dados e fatos, especialmente quando isso fere sua identidade e autoestima”. É preciso, então, atentar para a forma: o como dizer. A exemplo de estudos como os de Isabelle Stengers e Phillipe Pinhare, o ensaio ressalta que “Na batalha pelo encanto, os feitiços se combatem com outros feitiços”. Dizer de cara simplesmente “não”, falar que é “falso”, embora importante, é atrair para essa negatividade um bloqueio de tudo o mais que se possa conversar, à semelhança do que ocorre quando crianças são provocadas por uma proibição: aí, sim, é que ficam mais atraídas pelo que é proibido.
Enfim, além de imaginação e de uma predisposição de escutar o outro sem arrogância e elitismo, precisamos de uma nova forma retórica de nos comunicarmos. Como disse McLuhan, “O meio é a mensagem”, e como, curiosamente, disse depois: “O meio é a massagem”. O livro do professor Demuru nos sugere o meio, a forma, e é, a seu modo, uma “massagem”: uma bem-sucedida tentativa de desbloquear as energias criativas e aliviar as dores da convivência política.
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