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AfD
As pesquisas de opinião trazem resultados que a opinião pública, na Alemanha, e mais ainda fora da Alemanha, talvez ainda não tenha tido tempo de processar. Cautela é necessária na interpretação das mudanças. A Alemanha já não é um país de dois grandes partidos que juntos conseguiam formar um governo mais ou menos estável, como aconteceu no tempo de Angela Merkel. As atitudes em relação a imigrantes mudaram de tal modo que há os que culpam Merkel pelos males atuais da Alemanha, mesmo a recessão. A fragmentação partidária chega a dificultar a formação de alguma coalizão governável. E nenhum partido tem a força suficiente para governar sozinho.
A CDU, União Cristã Democrata (que é o partido de Merkel) não conseguiu prevalecer na eleição passada, uma “grande coalizão” não foi possível, e a fragmentação do eleitorado levou a que houvesse uma negociação tripartite, a coalizão chamada “semáforo”, entre o vermelho do Partido Social Democrata (SPD), os Verdes, e o amarelo do Partido Liberal (FDP). O semáforo não funcionou. Uma vez no governo, os três partidos perderam apoio de forma impressionante. Os liberais (FDP) chegaram a voltar para abaixo do limite de 5% para presença no Parlamento. Hoje, entre os potenciais candidatos a chanceler, nenhum tem a popularidade que tinha Merkel quando foi eleita em 2013. Não têm popularidade nem dentro de seus próprios partidos.
Friedrich Merz, o provável novo chanceler da Alemanha, da CDU, não provoca maiores entusiasmos, mas é o que se desenha, pelo Parlamento que sairá das eleições de 23 de fevereiro. As pesquisas de opinião mostram, nesta campanha eleitoral, um panorama partidário com bastante novidade. Nas múltiplas e periódicas pesquisas, a União Cristã Democrata (CDU), tradicional conservadora, aparece como o maior partido, entre 27 e 31 por cento do eleitorado; o socialdemocrata (SPD), que já foi um grande partido, foi declinando, em particular no atual governo, está entre 15 e 17 por cento, consideravelmente atrás de quem aparece como o segundo maior partido, o partido mais à direita no espectro político alemão, a Alternativa para a Alemanha (AfD), que oscila entre 20 e 22 por cento. Os Verdes ainda conseguem entre 12 e 14 por cento. O terceiro partido da coalizão governante foi o que mais se desgastou, e dessa vez provavelmente não alcança 5%, o mínimo para ter assento no Parlamento. A Esquerda (Die Linke) alcança uns 6%, e a Aliança Sara Wagenknecht (BSW), uma curiosa “esquerda conservadora e cética do ambientalismo”, talvez encoste na barreira dos 5%. Não há, por peculiaridades das regras eleitorais, uma correspondência exata entre essas percentagens e a proporção dos assentos no Parlamento.
Fragmentação não é a complicação por si só, mas sim o que ela representa para a formação de coalizões para governo, nas atuais condições vigentes na Alemanha, dada a chamada “Brandmauer”, parede corta-fogo, uma espécie de cordão sanitário com que os demais partidos trataram de isolar a Alternativa para a Alemanha (AfD). A complicação agora é que esse partido foi crescendo a despeito do tal “cordão sanitário” (ou talvez até por isso mesmo) e agora conta com mais de 20% do eleitorado.
Assim, claro que entrou na campanha eleitoral, impossível de evitar, o questionamento sobre se faz sentido a recusa a tratar com um partido que provavelmente terá 20% dos assentos no Parlamento. A instabilidade está instalada. Vi um jornalista suíço mais à direita indagando no youtube: como é que Merz se recusa a conversar com a AfD se copiou integralmente o programa da AfD para imigração? E quanto mais à direita da CDU está a AfD, se na questão dos imigrantes praticamente não há diferença? Claro que a presença de alguns membros da AfD portando bandeiras com suásticas em manifestações não ajuda os que estão a favor de flexibilizar o cordão sanitário. Na questão da guerra na Ucrânia, e até na dos imigrantes, paradoxalmente, há semelhança de posições entre AfD e BSW, a ponto de Sara Wagenknecht ter se dado ao trabalho de explicar as diferenças bastante sutis. Falando do telefonema Trump-Putin, Sara Wagenknecht alertou contra a imprevisibilidade de Trump e sua ideia de empurrar para a União Europeia os custos de reconstrução na Ucrânia, mas insistiu mais uma vez sobre o absurdo de enviar armamentos à Ucrânia se está evidente para qualquer um que a Ucrânia não tem a menor condição de reconquistar militarmente seus territórios. Ao que parece, tropa da União Europeia na Ucrânia não haverá. Nem dos Estados Unidos.
Mas há mais complicação ainda, este ano. Que impacto terão as ofensas do vice-presidente norte-americano JD Vance, durante a Conferência de Segurança deste ano em Munique? JD Vance afirmou nada menos que a Europa estava se transformando em ameaça à democracia, disse aos governantes europeus ali presentes que estavam suprimindo a liberdade de opinião, apoiando a censura, parecendo propagandistas da era soviética com uso de palavras como “desinformação” e “má informação”. A uma semana da eleição, ajudarão a AfD ou poderão fazer com que uma revolta contra a interferência do governo Trump nas eleições alemãs (que foi bem além do discurso de Vance) altere as atuais intenções de voto? Terá algum efeito a resposta indignada de Boris Pistorius, o Ministro da Defesa da Alemanha?
Outro tema conflituoso, meio escondido na campanha, é o teto da dívida e as novas demandas no orçamento público. Essa discussão não é nova. Tornou-se mais aguda quando a ajuda à Ucrânia em guerra começou a pesar no orçamento. Ou mesmo, se não a ajuda à Ucrânia, todo o contexto em que o Ministério da Defesa obteve mais verbas. A Alemanha obedece estritamente a exigência constitucional que determina que o déficit estrutural não pode passar de 0.35% do PIB. Há quem diga que não foi a Ucrânia que pressionou o cumprimento desse limite. Crescimento fraco, despesas gerais crescentes, infraestrutura deteriorada competem por espaço no orçamento. Já vimos antes algum economista criticando tal “camisa de força fiscal ultrapassada”. A dívida pública da Alemanha está em 62% do PIB.
O tema veio à tona meio escondido nesta campanha. O partido do provável futuro chanceler, CDU, defende o famoso rigor fiscal alemão. “Dívidas de hoje são o aumento de impostos de amanhã” diz a CDU. A AfD defende rigor fiscal, assim como a aliança BSW, que quer o veto a qualquer mudança constitucional que abra caminho para a compra de mais armamento. É notório que tem aumentado a pressão do governo americano, já antes de Trump, para que os europeus aumentem seus gastos com defesa.
Parece que o trauma dos alemães com a famosa hiperinflação dos anos vinte do século passado ficou para trás, pois uma pesquisa mostra que algo mais que metade dos alemães apoia atualmente a revisão do limite de endividamento. Mas isso teria que ser aprovado no Parlamento por maioria de dois terços. O provável futuro chanceler deu alguma sinalização de que estaria disposto a flexibilizar o limite. Mas analistas que acompanham o debate orçamentário não apostam numa tal flexibilização. O mais provável é formar algum fundo emergencial provisório, como já aconteceu para o fornecimento de armas à Ucrânia.
E o telefonema de Trump a Putin? E a negociação subsequente entre os dois? Chegará a ter impacto sobre o voto de domingo? Mais que isso, terá influência sobre as futuras negociações dos partidos para a formação do governo? Pois sabidamente sempre foi o governo dos Estados Unidos que empurrou a OTAN para cada vez mais perto da fronteira da Rússia, desde a dissolução do Pacto de Varsóvia. Até chegarmos ao pleito do Zelenski de ingresso da Ucrânia na OTAN. Resumindo uma longa história, os europeus na OTAN aquiesceram e colaboraram. E agora de repente a surpresa de que Trump está negociando com Putin sobre a guerra na Ucrânia, sem nem ao menos ter informado seus aliados na OTAN, e avisando que a Ucrânia não fará parte da OTAN, em acordo com que a Rússia sempre demandou desde o início deste século. E agora? Se acompanharam a posição do governo dos Estados Unidos anteriormente, os aliados na OTAN devem agora divergir? O que dirão os eleitores alemães, que sempre foram divididos entre “medo da Rússia” e uma “Ostpolitik” de uma era pregressa que sugeria aproximação e considerava que “a Rússia é europeia”. Haverá os que sentirão um certo alívio se a guerra for suspensa, não importa de que maneira, sem pensar ainda na distribuição dos custos, quem perde e quem ganha com eventual acordo de paz. No futuro, as relações entre a Alemanha e os Estados Unidos se tornarão mais distantes ou mais estreitas? O índice de incerteza está alto, e nem está claro se o resultado das eleições na Alemanha vai diminuir incertezas.
Esclarecedor o artigo Bom!