
Heroinas
A data do 8 de março, Dia da Mulher, transcorria tranquila e, no calendário online se podia ler “que o objetivo central desse dia é convidar a sociedade a refletir sobre a condição feminina no mundo e a debater a questão da igualdade de direitos entre mulheres e homens… sem que as diferenças biológicas entre os sexos sejam utilizadas como pretexto para diminuir o valor da mulher”. Entretanto, esse voto piedoso, sacralizado pela própria ONU, que oficializou a data em 1975, tem uma origem de fundo político e constitui uma conquista social.
A data evoluiu e se integrou mesmo dentro das famílias, nas quais as esposas e mães costumam ser homenageadas por buquês de flores por seus maridos e filhos, já havendo mesmo uma incorporação da data pelo comércio, associações e entidades religiosas. Mas de onde veio essa iniciativa responsável pela criação do Dia Internacional da Mulher? Para evitar discussões de fundo político, o mais aconselhável é se recorrer ao jornal O Globo, no qual se publicou com fotos e destaque a origem e o significado da data.
Como essa data acabou gerando debates e viralizou nas redes sociais, a opção de se buscar qual teria sido a origem no O Globo parece ser a mais consensual. Nele se diz textualmente ser “um data marcada por reflexões sobre a luta por igualdade de gênero, conquistas sociais e desafios ainda enfrentados pelas mulheres em todo o mundo”. Sua origem “está atrelada às reivindicações de trabalhadoras no século XX”.
E a primeira comemoração do Dia da Mulher teria sido no dia 19 de março de 1911, quando “mais de um milhão de pessoas protestaram pelos direitos das mulheres na Áustria, Dinamarca, Alemanha e Suíça. Nos primeiros anos, esses Dias da Mulher estavam intimamente ligados aos movimentos operário e socialista. Em 1914, foi em 8 de março que as mulheres socialistas se reuniram em Berlim, em particular para exigir o direito ao voto. O acontecimento é considerado a primeira manifestação de fato do 8 de março”.
A partir de 1970, o jornal destaca: “os movimentos feministas ocidentais aproveitaram essa data simbólica para fortalecer as reivindicações por direitos políticos e sociais iguais, pela legalização do aborto e pela igualdade no mercado de trabalho”. Ao restringir aos “movimentos feministas ocidentais” a data e as reivindicações, ficou claro não ser mundial, porque nem todos os países permitem às mulheres fazerem tais reivindicações e outros sequer reconhecem o direito básico da igualdade social e política da mulher com os homens. É o caso dos países islâmicos.
E aqui já começamos a entrar num terreno sujeito a divergências mesmo no chamado mundo ocidental. Podemos falar mesmo em retrocesso dos direitos adquiridos pelas mulheres nos Estados Unidos, considerado até recentemente como o país padrão em termos de direitos civis, políticos e democráticos. Mesmo porque foi em Chicago, em 1908, que se comemorou o primeiro Woman ‘s Day, de acordo com o jornal mensal socialista The Socialist Woman, com a reunião das primeiras 1500 mulheres pioneiras.
No ano seguinte, no dia 28 de fevereiro, o Partido Socialista estadunidense tornou nacional a data comemorativa das mulheres. Mas um retrocesso veio com a Suprema Corte anulando, em 2022, a decisão no caso Roe versus Wade, sustentando não haver mais um direito constitucional federal ao aborto, permitindo a muitos Estados restabelecerem a proibição e proibição ao aborto.
Era esse o quadro de comemoração do Dia da Mulher, quando o atualmente mais famoso pregador religioso, desta vez um católico, com milhões de seguidores na rede social Instagran, o frade carmelita Gilson pronunciou ao vivo algumas declarações mal recebidas por influenciadores apoiadores das mulheres e do movimento feminista. Para se ter uma ideia da penetração do frade Gilson no mundo católico, basta lembrar reunir mais um milhão de seguidores com suas transmissões ao vivo às quatro horas da manhã.
Frade Gilson citou o primeiro livro da Bíblia, o Gênesis, no qual se narra como Deus teria criado o primeiro homem e, a seguir, usou uma de suas costelas para criar a primeira mulher. Com base nisso, com base no texto considerado sagrado, consagrou o homem como chefe do casal e da família e a mulher como sua simples auxiliadora, na contramão dos movimentos femininos e feministas que militam pela igualdade entre homem e mulher.
Embora as frases do frade Gilson, consideradas conservadoras e reacionárias, não tenham sido rechaçadas pelas mulheres presentes, provocaram contestações e críticas de intelectuais, professores e mesmo de católicos, assumindo em pouco tempo feições políticas com adesões em favor do frade pelas plataformas do ex-presidente Jair Bolsonaro e do deputado federal Nikolas Ferreira, logo viralizando pelas redes sociais bolsonaristas e mesmo evangélicas.
A jornalista Madeleine Lacsko, colaboradora do UOL e editora de Narrativas na plataforma do Antagonista, destoou com seu youtube por considerar as rezas a causa das críticas feitas ao frade Gilson, quando se esperava que usasse suas críticas e ironias em favor das mulheres livres e insubmissas, das quais é bem um exemplo.
Entre os críticos à interpretação bíblica das relações ditadas por Deus para o primeiro casal, de sujeição da mulher ao homem, destacou-se o youtuber Henry Bugalho, escritor, filósofo e tradutor. Para ele, não houve incorreção do frade Gilson que usou com precisão a narrativa bíblica. A falha ocorreu, segundo Bugalho, porque a Bíblia é uma coleção de livros escritos por diversos autores há muitos séculos e nem sempre se adaptam à evolução e à realidade social dos dias atuais. Nessas épocas passadas, a condição da mulher era de inferioridade e parecia normal ser assim considerada mesmo nos livros sagrados.
Daniel Gontijo, doutor em neurociências, professor de psicologia e pesquisador, tem a mesma posição de Henry Bugalho e considera que certas situações bíblicas, como as justificativas da escravidão com textos para senhores e para escravos adaptavam-se à realidade da época, deveriam ser adaptadas à nossa época. Mas tanto Bugalho como Gontijo reconhecem haver textos bíblicos mais recentes, como os escritos pelo apóstolo Paulo sobre a condição da mulher, cuja misoginia difere da própria doutrina de Cristo.
Ainda sobre mulheres, mas dentro da Igreja católica, começou na França uma greve inédita, ainda pequena, entre mulheres fiéis engajadas na vida paroquial para chamar a atenção sobre a importância do seu papel dentro da igreja. Elas denunciam a falta de reconhecimento do lugar das mulheres e por não terem participação nas tomadas de decisão em todos os níveis da Igreja.
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