Chile

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Uma coluna de fumaça escura levantou-se na área central de Santiago do Chile na manhã de terça-feira, 11 de setembro de 1973. Não parecia um incêndio qualquer, mas algo grave e ameaçador porque minutos antes foi possível ouvir o ruído dos caças da Força Aérea do Chile em voos rasantes sobre o centro da cidade. Rapidamente começaram a chegar as informações sobre o que estava se passando. Dramáticas imagens do cirúrgico bombardeio ao Palácio La Moneda começavam a correr o mundo. Eram cenas chocantes em se tratando de um país que cultivava a imagem de estabilidade política e solidez institucional. Naquele dia o governo democraticamente eleito do socialista Salvador Allende chegava ao fim e com ele a democracia chilena e tudo o que ela significava em termos de cultura política e convivência entre os chilenos. 

Salvador Allende havia governado o Chile por pouco menos de três anos depois de ter vencido as eleições em 1970 como candidato pela Unidade Popular (UP), uma coalizão de esquerda nucleada pelos Partidos Socialista (PS) e Comunista (PC), somados a alguns aliados menores. O Movimiento de Izquierda Revolucionario (MIR), que não faia parte da UP, contestou permanentemente o caminho adotado por Allende.

O que ocorreu para que o golpe se impusesse? 50 anos depois alguns fatores explicativos podem ser arrolados. Em primeiro lugar, é preciso considerar que Allende era um presidente minoritário, eleito com 36% dos votos e sua posse se deu no Congresso, com o apoio pontual da Democracia Cristã (DC); que a política chilena da época estava dividida em três blocos – os liberais e nacionalistas, a democracia-cristã e o eixo socialista-comunista –, com projetos alternativos de sociedade que, ao extremarem suas posições, dificultou o equilíbrio do sistema político; que as reformas implementadas por Allende evidenciaram-se excessivamente maximalistas e o caminho adotado para realizá-las, por meio do Executivo e sem negociação com o Congresso, tornou-se um problema incontornável; que o apoio dos EUA à oposição e, por fim, ao golpe de Estado, não deixam dúvidas a respeito do que se passou no Chile, transformado num dos palcos da “Guerra Fria”. 

O período em que Allende governou o Chile passou a ser identificado como a experiência chilena. Allende acalentava a ideia de que seria possível a construção do socialismo mediante a manutenção e o aprofundamento da democracia. A isso ele chamou de “via chilena ao socialismo”. Tratava-se de uma proposição inédita de revolução, de repercussão universal. 

O primeiro ano do governo Allende foi bastante exitoso, como os dados comprovam: o PIB cresceu 8,6%, o desemprego caiu para 4,2%, a produção industrial subiu 13% e a inflação caiu de 34,9%, em 1969, para 22,1% em 1971. Os salários do sector público aumentaram 35% e do setor privado em 50%. O cobre foi nacionalizado com o apoio unânime do Congresso, quase todos os bancos passaram para o controle do governo e se estabeleceu uma área de propriedade social da economia baseada na intervenção de cerca de 150 grandes fábricas e empresas.

No entanto, o superaquecimento da atividade produtiva bem como a política de expansão dos gastos públicos e de aumento dos salários logo mostrariam suas consequências inflacionárias. Allende e a UP fizeram a opção por um “keynesianismo selvagem” difícil de ser revertido. Isso e mais o boicote norte-americano à economia chilena conduziram o país rapidamente a uma situação econômica cada vez mais incontrolável, com repercussões políticas imediatas: o avanço eleitoral da UP, que havia alcançado mais de 50% dos votos nas eleições municipais de abril de 1971, acabaria se perdendo, juntamente com a então neutralidade da Democracia Cristã.

Apesar de tudo, 1971 foi o ano glorioso do Chile de Allende e parecia indicar que a aposta na via chilena ao socialismo poderia redundar em êxito. Mas no final do ano as coisas começam a se complicar. A visita de Fidel Castro ao Chile em novembro e sua permanência por 24 dias, percorrendo o país de norte a sul, fazendo discursos e dando entrevistas, representou um desafio direto à fórmula da via chilena ao socialismo, já que para o líder cubano só havia um caminho para a revolução na América Latina: a via armada. A visita causou uma mudança no clima político: a partir desse momento se começou a falar de “guerra civil” e “fascismo”. Fidel sabia que a ideia de transitar ao socialismo pela via democrática não era uma estratégia consensual na UP e o dirigente cubano apostou numa mudança de rumos da revolução no Chile. Quando emergiram as passeatas das “panelas vazias”, em fins de novembro, Fidel defendeu a repressão aos manifestantes, desafiando abertamente a Allende. No discurso final, no Estádio Nacional e ao lado de Allende, afirmou que o Chile não vivia uma revolução, mas um “processo político insólito”.

Em 1972, as dificuldades do governo no Parlamento evidenciavam que se tornava cada vez mais difícil um acordo entre UP e DC. Sabia-se do risco de a DC derivar para a direita e era isso que se via a cada passo.  Para agravar a situação, os socialistas bloqueavam esse tipo de aliança, contando com o apoio de outras forças de esquerda, especialmente do MIR. O que se viu foi uma fratura cada vez mais acentuada na esquerda entre aqueles que propunham “acumular forças” e aqueles que, vocalizando a consigna “avanzar sin tranzar”, defendiam o estabelecimento de um poder popular. Em 26 de julho, em comemoração ao aniversário do assalto ao quartel Moncada – episódio que está na origem à revolução cubana –, os partidários dessa última tendência se reuniram em Concepción e instituíram uma Assembleia do Povo, declarando o fim do Congresso da República. Projetava-se claramente uma “dualidade de poderes”, contrariando os fundamentos da via allendista.

Em outubro de 1972, a direita desafia abertamente o governo com a “greve” dos caminhoneiros, afetando o abastecimento de viveres por mais de um mês. Financiado pelos EUA, esse movimento foi uma espécie de xeque-mate ao governo. O mal-estar e os conflitos sociais passaram a ser diários, recrudescendo o “mercado paralelo” de produtos que já havia se instalado. Nessa situação, Allende viu como única solução convocar os militares para o Ministério com o intuito de restabelecer a ordem. Isso não fazia parte da estratégia da via chilena, o que evidenciava que Allende sentia correr por entre os dedos os elementos essenciais do seu projeto.

Todos os esforços a partir dai demonstraram-se inúteis. A DC inclinou-se abertamente para a direita formando a “Confederação Democrática” para participar das eleições parlamentares de março de 1973, nas quais obteve um resultado satisfatório, mas insuficiente para se propor o impedimento de Allende no Congresso. Em 29 de junho, uma guarnição do exército se levantou em Santiago numa tentativa de golpe de Estado que redundou em diversos mortos e feridos, mas acabou debelada. O cenário era de confrontos diários na ruas, greves e paralizações, além de ações abertamente terroristas em diversas partes do país. Dividida, a esquerda si digladiava entre estimular ou conter a “guerra civil” que se desenhava. Não tardaria muito para o Congresso aprovar a inconstitucionalidade do governo Allende, selando qualquer possibilidade de debelar a crise. O golpe de Estado viria em seguida.

Olhando o que se passou entre 1970 e 1973, fica evidente que o processo político se alterou profundamente. Da vitória e posse de Allende e de um primeiro ano exitoso, a dinâmica e o sentido dos conflitos evoluíram de uma certa estabilização para uma polarização cada vez mais aguda e rapidamente para a confrontação, impondo-se em seguida a desistitucionalização do governo Allende. 

De toda forma, o dramático desfecho da experiência chilena não pode ser visto como uma tragédia na qual o fim já estava pré-determinado. Houve possibilidades de acordo entre a UP e a DC que foram perdidas e a crise se instalou de forma irreversível.  Em segundo lugar, é necessário refletir sobre o fato de que não se pode fazer transformações radicais sem o concurso das maiorias – uma sustentação não apenas eleitoral, o que toca no tema da hegemonia, conceito completamente ausente no discurso da UP e mesmo de Allende. O isolamento internacional de Allende é outro dado espantoso. Não houve apoio significativo da URSS menos ainda da China. Allende também não buscou aproximação nem identificação com o reformismo da socialdemocracia europeia, preferindo manter-se no campo revolucionário, no qual a complicada relação com a Cuba de Fidel Castro lhe trazia mais problemas do que soluções. 

Olhando especificamente para a esquerda chilena, fica evidente que ela trabalhou de maneira convencional o desafio de se construir o socialismo mantendo a democracia. No fundo, concebeu a via chilena apenas como um slogan, um artifício de unidade e mobilização. Por isso, a via chilena não se consubstanciou efetivamente numa via democrática ao socialismo e acabou por reduzir-se a um conjunto de operações táticas frente à economia e ao aparelho de Estado. Rigorosamente, também fica claro que a concepção de socialismo da esquerda chilena era a mesma das revoluções vitoriosas no século XX. 

Por fim, a experiência chilena acabou por se tornar historicamente um ponto de inflexão na cultura política da revolução, indicando a necessidade da sua superação, sem a qual não se poderá enfrentar os problemas e impasses da democracia, entendida como a projeção civilizacional do nosso tempo, capaz de garantir transformações históricas sem a perda das liberdades e das individualidades. O fracasso da experiência chilena demonstra que o tempo da revolução é incompatível com o tempo da política. Enquanto o primeiro é marcado pela urgência da tomada do poder, o segundo reconhece que as transformações históricas devem ocorrer a partir de consensos pactuados politicamente no interior de uma moldura democrática.