O neoliberalismo é o grande vilão do século XXI, responsável por todos os males da humanidade, da crise financeira de 2008 ao tufão das Filipinas, passando pela destruição de Fukushima. É a besta fera, o quinto cavaleiro do Apocalipse, o mito demoníaco que lança suas garras sobre as nações e os povos provocando desemprego, pobreza, desigualdade, desordem e violência, tentáculos que manipulam governos e agradam às elites. De tanto ser identificado como o mal, o indesejado, e o perverso, o conceito de neoliberalismo perdeu todo o significado. Ninguém sabe mais o que é e nem parece interessado em saber, mesmo porque o termo foi criado pelos seus adversários.
E o que é afinal neoliberalismo? O neoliberalismo pode ser entendido como a adoção contemporânea de ideias e princípios teóricos da escola econômica neoclássica (século XIX) e da Escola Austríaca (século XX) fundamentadas na defesa da economia de mercado e na crítica da forte presença do Estado na economia. A polarização entre a “economia de mercado” e o “Estado de bem-estar social”, como visões extremas do papel do Estado na economia, tem confundido mais que esclarecido. Marcada por uma cegueira ideológica, a polarização impede uma reflexão racional e lógica sobre a relação entre mercado e Estado e a melhor forma de interação entre os dois como base para o desenvolvimento das nações. Os defensores do mercado ressaltam a eficiência na economia e os adeptos do Estado destacam a sua capacidade de promover equidade social, capacidade que, diga-se de passagem, tem sido visível nos países europeus e, principalmente, escandinavos, mas não nos países pobres de governos estatizantes, como foi o Brasil até a década de noventa.
Eficiência e equidade não podem ser excludentes e, no mundo moderno e integrado, nenhuma sociedade pode ter equidade se não tiver uma economia competitiva e eficiente. Se a busca pela eficiência pode, em determinadas condições e momentos, prejudicar a equidade social, esta não se sustenta se o Estado ignorar o mercado e decidir controlar a produção, a distribuição e os investimentos com limitada eficiência. Ocorre que as experiências denunciadas como neoliberais têm retirado o Estado de algumas atividades e responsabilidades, parte das quais transferidas ao mercado, mas não necessariamente desmontado as políticas que podem contribuir para a equidade social.
No Brasil, os governos de Fernando Henrique Cardoso são apresentados pelos seus críticos como o símbolo máximo da perversão neoliberal. Em que consistiu o neoliberalismo destes governos? Em síntese, podem ser citadas três medidas centrais das gestões do PSDB – a reforma do Estado, a abertura externa da economia, e o ajuste fiscal – que foram um contraponto a três mitos sagrados do modelo econômico dominante até então: o Estado empresário e investidor, para substituir a incapacidade ou desinteresse do capital privado no investimento de larga escala; o protecionismo econômico, para defender as empresas nacionais da concorrência internacional; e o descontrole nos gastos públicos justificado pelas políticas e assistência social, acompanhado de inflação e de resultado sabidamente precário na busca da equidade social.
O Estado investidor, protetor e indutor teve um papel importante na industrialização do Brasil até a década de 70, mas carregava a marca da ineficiência e da alocação política e voluntarista dos recursos públicos, ao mesmo tempo em que consolidava a limitada competitividade da economia, que continuaria sempre carente de proteção. No final da década de 80, o mundo passou por aceleradas mudanças econômicas, institucionais e tecnológicas que tornou obsoleto e inadequado este modelo nacional-estatista, caro, ineficiente e anacrônico, confirmado pelo desmonte dos sistemas do socialismo autoritário (ou capitalismo de Estado?).
O chamado neoliberalismo de Fernando Henrique Cardoso foi uma resposta a este esgotamento do tripé Estado empresário e investidor, protecionismo econômico e descontrole dos gastos públicos. Importante dizer, além disso, que nenhuma força política de peso no Brasil defende mais este modelo desde que o PT-Partido dos Trabalhadores assumiu o poder e passou a incorporar rapidamente (algumas vezes com vergonha) as bases do sistema introduzido pelos governos anteriores (embora continuem atacando o neoliberalismo que assumiu na sua prática).
A reforma do Estado avançou, principalmente, na privatização de vários setores da economia e na quebra de alguns monopólios setoriais. Foram privatizadas as atividades da siderurgia, distribuição de energia elétrica, telecomunicações, e rede ferroviária. Nos serviços públicos com monopólio natural, como energia e telecomunicações, houve uma substituição do Estado investidor pelo Estado regulador, com a criação de várias agências reguladoras. O que evidencia que não se trata de um Estado mínimo e omisso, mas de um novo papel que deixa espaço para eficiência do mercado sobre controle e regulação. Medindo pelo resultado, excetuando talvez o sistema ferroviário, a privatização foi um grande sucesso tanto no aumento da eficiência quanto, principalmente, na ampliação dos serviços, A Vale do Rio Doce saiu de uma medíocre e ineficiente empresa pública para emergir como a maior empresa mundial de mineração e siderurgia. Mas o melhor exemplo foi a telefonia, que revolucionou o sistema de comunicação no Brasil e ampliou o acesso a toda a população, reduzindo a dramática desigualdade de direito à comunicação. A economia brasileira atualmente é muito mais eficiente e as empresas brasileiras geram mais riqueza, mais emprego e muito mais arrecadação pública que na época do nacional-estatismo.
A privatização incomodou a corporação de servidores públicos, menos por valores patrióticos e mais pelos privilégios que tinham e ainda têm os funcionários das estatais brasileiras que continuam existindo em vários setores. Mesmo ainda batendo na tecla do neoliberalismo, os governos do PT mantiveram a privatização e estão realizando novas privatizações ou concessões de serviços públicos, tanto pela incapacidade de investimento do Estado, quanto pela maior eficiência da gestão privada dos serviços.
A julgar pelas críticas do passado, a Presidente Dilma se entregou de vez ao neoliberalismo, acelerando as privatizações de rodovias e, principalmente, do sistema aeroportuário do Brasil, com a concessão dos três mais importantes aeroportos do Brasil: Galeão, Guarulhos, e Brasília. Será que Dilma virou neoliberal? Ou compreendeu que certas atividades e serviços podem ser melhor geridos pelos setor privado, o que permitiria deslocar recursos públicos para serviços sem retorno financeiro e alto retorno social, como educação? Quando se trata de serviços públicos fundamentais para a qualidade de vida e a equidade social cabe ao Estado garantir a oferta ampla e de qualidade para a sociedade e, principalmente, para os que não podem pagar com a própria renda, ou seja, a esmagadora maioria da população brasileira.
A abertura da economia brasileira para o comércio mundial começou, de forma brusca e talvez exagerada, nos primeiros anos do governo Fernando Collor. Foi mantida e ampliada pelos governos seguintes, incluindo os recentes governos do PT. O impacto das medidas de redução drástica de barreiras alfandegárias gerou desorganização em alguns setores da economia, como calçados, mas o protecionismo estava travando a produtividade e a competitividade da economia brasileira e ficando muito caro para os consumidores, ricos ou pobres, forçados a comprar produtos nacionais de preços superiores, em alguns casos, muito superiores aos praticados no mercado internacional. Passadas duas décadas, os setores frágeis da economia se recuperaram e ganharam em produtividade e houve um aumento geral da competitividade das empresas brasileiras (excluindo os produtos que concorrem com a China, mas aí é outra historia, porque estamos lidando com um capitalismo de Estado e selvagem, com baixíssimos salários e prática sistemática de dumping).
A abertura da economia, regulada e moderada pelo Estado, promoveu uma reestruturação produtiva, renovando o parque industrial e viabilizando setores de alta tecnologia. Embora ainda se justifiquem intervenções do Estado setoriais e temporárias para incentivar a formação e consolidação de novas cadeias produtivas, como tem sido o caso da indústria naval, mérito do Governo Luís Inácio Lula da Silva. Mas estes incentivos não podem ser generalizados nem permanentes e devem declinar na medida em que os setores ganhem maturidade.
O terceiro pilar do que tem sido chamado de neoliberalismo no Brasil, foi o ajuste fiscal com a formação de um superávit fiscal para conter a explosão dos gastos correntes e a rolagem da dívida pública, condição fundamental para a reversão do processo inflacionário brasileiro. Complementa o superávit primário a Lei de Responsabilidade Fiscal, que estabelece regras e limites para as despesas, de modo a impedir o descontrole fiscal na União, nos Estados e nos Municípios. Vale destacar que o ajuste fiscal foi ainda muito modesto nos governos de Fernando Henrique Cardoso, tendo sido ampliado e intensificado nos primeiros anos do governo Lula, segundo orientação do ministro Antônio Palloci. O ajuste fiscal tem sido afrouxado nos anos recentes, com aumento dos gastos correntes, mas continua presente no pensamento dominante do Brasil.
O que foi apresentado acima evidencia que o liberalismo econômico radical, com o Estado mínimo e a predominância total do mercado, não prevalece neste século em nenhum país, menos ainda no Brasil. O Estado regulador, provedor social e promotor do desenvolvimento continua presente e deve ser uma base para o desenvolvimento das nações no futuro. Convivendo e respeitando, porém, o mercado e sua dinâmica, de modo a estimular os investimentos privados que, diga-se de passagem, estão muito contidos no Brasil. Por outro lado, a análise anterior mostra que as reformas no Estado, mudando seu papel e sua relação com o mercado (criticado como uma perversão neoliberal que a presidente Dilma parece engolir) contribuíram para aumentar a eficiência da economia e da gestão pública, sem a qual não há desenvolvimento sustentável.
E a equidade social? Durante décadas do modelo nacional-estatizante, a desigualdade social e regional no Brasil não era menor que das últimas décadas, exceto em alguns poucos intervalos de acelerado crescimento econômico. O que falta para combinar eficiência econômica com equidade social é a alocação de recursos públicos para oferta ampla dos serviços públicos, com destaque para a educação, garantindo qualidade de ensino para a população e eliminando a fonte primária das desigualdades sociais: a diferença dramática de qualidade das escolas públicas e privadas. Esse é um papel adicional e fundamental do Estado, muito mais importante que os investimentos produtivos das estatais em setores que interessam ao setor privado, que aí podem ser mais eficientes e rentáveis. Muito mais significativo que o protecionismo do setor privado e os incentivos fiscais pagos pela sociedade, os quais retiram capacidade de investimento público.
O debate sobre os modelos econômicos tendem a se embrenhar em nomenclaturas estreitas, deixando a descoberto nuances importantes como as que você trouxe em seu artigo, tão preciso, como didático. A moda atual dos economistas da USP com influência decisiva sobre a política econômica é a Macroeconomia Estruturalista do Desenvolvimento. O foco é o crescimento do PIB, taxas de inflação e de juros, controle fiscal, dívida pública, superávit primário. As questões de Equidade e justiça social são tratadas como políticas compensatórias, sem perder o foco do mercado que termina como grande beneficiário dessas rendas sociais; impulsionado pelo crescimento do poder de compra dos 20 bilhões de reais que chegam nas mãos dos mais pobres. Isto sem falar de outros tantos bilhões das desonerações fiscais para as multinacionais (automóveis e linha branca) visto como subsídio para o crescimento do PIB industrial, com perda de receitas da união em detrimento de investimentos mais qualificados na educação, na saúde e em projetos sociais como a seca no Nordeste.
gostaria de ler comentario sobre o nosso minerio de modo geral que e vendido a preço de banana, pela autoridades constituidas e o povo vendo todas essas privatizaçoes, sobrando para ele mais onus,tudo tem limite.
No começo da leitura pensei: vou finalmente entender o significado do neoliberalismo.
Engano! O assunto é tão complexo que nem em um texto claro como o seu me fez entender tamanha abstração sobre a nossa realidade cotidiana.
Dá para fazer um paralelo com a vida doméstica, para tornar o tema mais palpável?
beijo