
Johann Chapoutot
Ao contrário do fascismo, praticamente uma salada ideológica e sem uma filosofia própria (como anota Umberto Eco em conhecido ensaio), o nazismo não se limitava a uma agitação violenta e a uma retórica “fuzzy”. Digamos que este era mais transcendente que aquele. Embora gêmeos em seu totalitarismo, o nazismo tinha muito mais nitidez do rumo a seguir, dos sonhos a conquistar, das ideias a disseminar. E isso fica muito mais claro depois de lermos “A Revolução Cultural Nazista”, publicado no Brasil em 2022, do historiador francês Johann Chapoutot (1970), referência em regimes totalitários.
O alto nível cultural dos nazistas é o que se depreende do estudo de Chapoutot, em especial quando examina a participação dos juristas alemães (vários deles inegavelmente brilhantes) que aderiram ao regime ou quando trata do significado profundo e nuclear da questão racial e dos conceitos de “espaço vital” (“Lebensraum”) e de “solo e sangue” (“Blut und Boden”). O que salta aos olhos é a discussão aberta dos valores propostos e a fé no futuro glorioso que fatalmente viria. Um futuro, é verdade, retroativo, uma vez que, como assinala o historiador, o nazismo tinha uma premente necessidade de voltar às origens do homem germânico. Nesse sentido, a “revolução” do título da obra nada tem a ver com o que normalmente entendemos por “revolução”. É o caso de dizer que os nazistas eram contrarrevolucionários e odiavam de coração a Revolução Francesa. A ambição deles com essa volta, que é uma revolução no sentido neutro ou científico do termo, era nada mais nada menos que refundar a moral “por meio de categorias que autorizam a agir e a exterminar”. Tais ideias, realça Chapoutot, “já estavam presentes na sociedade alemã e, de maneira geral, nas sociedades ocidentais”. Dentre elas, claro, o antissemitismo e a obsessão de pureza racial, mas também o nacionalismo, o anticristianismo, o expansionismo.
Como se sabe, e o historiador nos recorda, as ideias nazistas “[…] não foram impostas pela violência ou intimidação; foram escolhidas por indivíduos convencidos de encontrar nelas as respostas necessárias às questões, aos problemas e males da época”. O que favoreceu uma capilaridade de valores e em muito facilitou a ação política.
Inimigos de qualquer postura universalista, os nazistas tinham horror ao Iluminismo e à igualdade pregada pelos revolucionários de 1789. Precisaram até, como o aborda Chapoutot, desvirtuarem Kant, o que também praticaram com Platão. “Se o Iluminismo inaugura o tempo do debate, o anti-Iluminismo consagra o tempo do combate”, resume o autor, e isso, como vocês já notaram, nos soa agora mais uma vez familiar.
Ao examinar os conceitos de “espaço vital” (“Lebensraum”) e de “sangue e solo” (“Blut und Boden”), assim como a exterminação sistemática dos “piolhos” judeus (estes não passavam de um “fator patogênico”), o historiador nos mostra um eixo semântico biológico-científico que atravessa tais noções. O próprio termo “Lebensraum”, tão caro aos nazistas, vem da zoologia e significa literalmente “o espaço indispensável para a vida de um indivíduo ou de um grupo de seres vivos, vegetais ou animais, aquele de onde eles extraem sua subsistência e sua nutrição”. Na esteira de uma filosófica idolatria ao “natural”, não sem motivo, os nazistas transportaram o termo das ciências naturais para as ciências humanas: a geografia, a geopolítica, a economia e a história.
Embora tenha concentrado os capítulos em grandes temas, Chapoutot deixa-nos entrever o quanto, ao se ver o monstro como um todo, as ideias e os conceitos se orquestravam e eram disseminados junto às massas. Enfim, discursos, slogans, filmes, manuais escolares, textos jornalísticos, conferências e vários tipos de comunicação, com a força da repetição e de grandes elos coesivos, se difundiam e se consolidavam. Por isso, em sua conclusão, o historiador ressalta que “[…] por mais chocante ou escandaloso que nos pareça, o nazismo é oposição – uma impressionante coleção de ‘anti’ isto e aquilo – mas também posição e proposição. Sem esse caráter propositivo, o ‘corpus’ de palavras, imagens e slogans nazistas jamais teria sido capaz de capturar o consentimento e mesmo a convicção e a adesão de milhões de indivíduos”. Em suma, houve, sim, uma “revolução cultural” abrangente e profunda, embora patológica e pervertida.
comentários recentes