
Angústia – Lucien Freud
“Agir é arrancar da angústia a própria certeza. Agir é efetuar uma transferência de angústia” in Seminário 10 A Angústia – Lacan
Minha formação tem origem nas ciências exatas, na engenharia, e deságua nas ciências humanas, com o mestrado em ciência política. No decorrer desse percurso, colidi — como quem encontra uma fissura inesperada — com a obra de Freud. Esse encontro transformou definitivamente o rumo da minha vida e a forma com que venho tecendo minha existência, entre desejos e seus limites, escovados por frustrações, angústias e curiosidade intelectual.
Fiz minha formação em psicanálise aqui no Recife, em uma instituição de orientação lacaniana, e exerci a prática clínica por oito anos. Depois disso, o desejo de ser analista deslocou-se para outras áreas.
É bem provável que, por influência de minha analista — também da escola lacaniana —, eu tenha me enredado nos seminários de Lacan, dos quais até hoje não consegui me desvencilhar. O que considero uma sorte: Lacan, em sua genialidade, libertou a psicanálise das amarras do poder institucional, abrindo-a ao mundo por meio da linguística estrutural e do pensamento de filósofos como Hegel, Heidegger e outros. Com isso, ampliou nossa compreensão do sujeito contemporâneo, imerso na cultura e em suas vicissitudes.
Esta série, Psicanálise, sociedade e cultura, que começa a ser publicada agora na Revista Será?, não tem pretensões acadêmicas. Embora baseada em minhas leituras de Freud, Lacan e outros autores do campo da psicanálise — além de referências da ciência política, da filosofia, da literatura e da história das religiões —, trata-se mais de um registro subjetivo, fruto do percurso da minha análise pessoal.
Não sei onde isso vai dar, nem tenho um planejamento rigoroso do que será escrito. A ideia é deixar que as leituras e releituras de Freud, Lacan e outros pensem comigo os desafios do homem contemporâneo, sua inserção na sociedade e, sobretudo, sua experiência com a cultura — entendida aqui, como em Freud, na indistinção entre Kultur e Zivilisation.[1]
Não escrevo para um público específico de iniciados na psicanálise e em suas diversas correntes. Escrevo para leitores — tenham ou não feito análise — que compartilham uma inquietação intelectual: o desejo de refletir sobre nossa contemporaneidade e sobre os, muitas vezes indecifráveis, afetos humanos que nos atravessam à luz da psicanálise.
Para situar o leitor diante da obra de Freud, proponho, inicialmente, uma curadoria que combine a cronologia dos textos com uma perspectiva temática e formativa, especialmente voltada à minha trajetória intelectual. A seguir, divido essa coleção em cinco blocos:
- Freud em Formação (1886–1899) — Volumes 1 a 3
- Temas centrais: neurologia, histeria, primeiros passos da psicanálise, projeto para uma psicologia científica.
- Destaques: “Estudos sobre a histeria”, “A interpretação dos sonhos” (começa no volume 3).
- Uso: base para compreender a virada de Freud da neurologia para a psicanálise.
- A Invenção do Inconsciente (1900–1906) — Volumes 3 a 5
- Temas centrais: sonhos, atos falhos, psicopatologia do cotidiano.
- Destaques: “A interpretação dos sonhos” (completa), “Psicopatologia da vida cotidiana”, “O chiste e sua relação com o inconsciente”.
- Uso: leitura obrigatória para quem estuda linguagem, literatura e o simbólico.
- Teoria das Pulsões e Clínica (1907–1915) — Volumes 6 a 9
- Temas centrais: narcisismo, sexualidade infantil, estruturas clínicas.
- Destaques: “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, “O caso Schreber”, “Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância”.
- Uso: articulação com a leitura de artistas, obras literárias e estudos sobre identidade.
- Técnica e Metapsicologia (1916–1923) — Volumes 10 a 14
- Temas centrais: técnica analítica, teoria da mente, instâncias psíquicas.
- Destaques: “Conferências introdutórias”, “Além do princípio do prazer”, “O ego e o id”.
- Uso: base técnica da prática analítica e aprofundamento da metapsicologia.
- Cultura, Religião e Sociedade (1923–1939) — Volumes 15 a 19
- Temas centrais: mal-estar na civilização, religião, morte, política.
- Destaques: “O futuro de uma ilusão”, “O mal-estar na cultura”, “Moisés e o monoteísmo”, “Análise terminável e interminável”.
- Uso: leitura essencial para quem articula psicanálise com filosofia, história, literatura e sociedade.
É uma obra vasta e impressionante, considerando que além desses dezenove volumes estima-se que Freud escreveu entre 25000 e 35000 cartas, das quais 10000 foram catalogadas.
No caso de Lacan, além dos escritos a seguir foram 27 anos de seminários, todos gravados e depois transcritos por várias fontes, dentre elas a de seu genro Jacques Alain Miller, que detém os direitos autorais de toda sua obra.
- Primeira Fase: A Influência da Psiquiatria e o Retorno a Freud (1930–1953)
Textos fundamentais:
- 1932 – “Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade”
Tese de doutorado. Importante para compreender suas raízes na psiquiatria e na fenomenologia. - 1949 – “O Estádio do Espelho como formador da função do eu”
Texto inaugural para a teoria do “Estádio do Espelho”, que articula o eu (moi) como uma estrutura imaginária. - 1953 – “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”
Discurso de ruptura com a IPA. Introduz a importância da linguagem na estruturação do sujeito.
- Segunda Fase: Os Seminários e a Linguística Estrutural (1953–1963)
Lacan começa a ministrar seus seminários, que são a espinha dorsal de sua obra oral e de maior circulação entre psicanalistas.
Seminários essenciais:
- Seminário 1 – Os Escritos Técnicos de Freud (1953–54)
Revisão de Freud com base na linguagem. - Seminário 2 – O Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise (1954–55)
Explicita a crítica à noção de ego da psicologia do ego. - Seminário 3 – As Psicoses (1955–56)
Leitura da psicose via “foraclusão do Nome-do-Pai”. - Seminário 5 – As formações do inconsciente (1957–58)
Desenvolve o conceito de metáfora e metonímia na estrutura do sintoma.
- Escritos (1966)
Obra escrita mais importante de Lacan. Reúne textos fundamentais, muitos dos quais haviam sido apresentados em congressos.
Textos-chave:
- “A instância da letra no inconsciente”
Articula Saussure e Freud: o inconsciente estruturado como uma linguagem. - “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”
Texto lógico-clínico sobre a constituição do sujeito. - “A ciência e a verdade”
Articulação entre ciência moderna e psicanálise.
- Terceira Fase: O Real, o Objeto a, os Nós Borromeanos (1964–1981)
Fase do Lacan mais maduro, com avanços teóricos de grande complexidade e um uso intenso da topologia e da lógica.
Seminários decisivos:
- Seminário 10 – A Angústia (1962–63)
Introduz o conceito de objeto a como causa do desejo. - Seminário 11 – Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise (1964)
A aula inaugural na École Normale. Sistematiza: Inconsciente, Repetição, Transferência e Pulsão. - Seminário 17 – O Avesso da Psicanálise (1969–70)
Introduz os quatro discursos (Mestre, Universitário, Histeria, Analista). - Seminário 20 – Encore (1972–73)
Conceitos de gozo, o feminino, o não-todo e a fórmula da sexuação. - Seminário 23 – O Sinthoma (1975–76)
Leitura de Joyce. Desenvolve o conceito de “sinthoma” como quarta consistência do nó borromeano.
- Pós-seminários e Escritos Menores
Recomendações:
- “Rádiofonia” (1970)
Reflexões sobre linguagem e discurso. - “Televisão” (1973)
Uma das poucas entrevistas que concedeu – explicita temas de forma acessível.
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Bem, aí está o mapa da densa floresta do conhecimento psicanalítico, que iremos adentrar sempre, a exemplo de Teseu, deixando em nosso caminhar os fios de Ariadne que são a razão, minhas limitações e curiosidade intelectuais e a realidade que me envolve.
No próximo artigo dessa série escreverei algumas reflexões sobre o artigo de Fred “Inibição, Sintoma e Angústia” de 1926, que marca a transição da primeira tópica (inconsciente, pré-consciente, consciente) para a segunda tópica freudiana (Isso, Eu e Supereu), antecede e inspira várias elaborações de Lacan, especialmente no Seminário 10 – A Angústia e oferece uma chave clínica fundamental para compreender as diferentes formas de sofrimento psíquico a partir da posição do Eu frente ao desejo, a castração e ao objeto perdido.
[1] A cultura humana — refiro-me a tudo aquilo em que a vida humana se ergueu acima de suas condições animais e em que se diferencia da vida animal — e eu me recuso a distinguir cultura de civilização in O Futuro de uma Ilusão (1927) Sigmund Freud – Obras Completas, Tradução de Paulo Cesar de Souza Ed. Companhia das Letras
BIBLIOGRAFIA
FREUD, Sigmund. Inibição, sintoma e angústia (1926). In: FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 17. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 10: A angústia (1962–1963). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Maria Ligia Nogueira da Silva. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
Excelente mapa para o estudo da Psicanálise e suas imbricações com a cultura e o processo civilizatório. Gratidão
Sigmund Freud era médico. O fundador da psicanálise primeiro formou-se médico pela Universidade de Viena, depois especializou-se em neurologia e depois é que passou a tratar de sofrimento psicológico. Como é que depois se permitiu que quem não é médico também possa ser psicanalista eu não sei, mas é incoerente e vai ser cada vez mais precário à medida que há cada vez mais remédios influindo sobre o funcionamento do corpo/mente. Tomar remédio em vez de entender suas próprias emoções é lamentável, mas é a tendência. Mesmo porque isso de ir ao psicanalista para analisar-se a si mesmo é um luxo pra bem poucos. Todos os períodos somados, acho que tenho uns quatro anos de psicanálise nas costas, mas sei de uns poucos que passam décadas indo ao psicanalista, têm tempo e dinheiro.
E aí vai provocação: esse que é considerado o maior psicanalista depois de Freud é apenas um charlatão que fez sucesso, nunca escreveu uma única palavra, e o que foi registrado de suas falas é tão ininteligível que pode ser interpretado de n maneiras. Li umas poucas páginas e desisti. É o oposto de Freud, que escrevia bem e em alemão claro. O apoio a Lacan é como aquele que têm as leis brasileiras que podem ser interpretadas ao gosto do freguês, ou de algumas resoluções da ONU que atingem o grau suficiente de ofuscação linguística para serem aprovadas, mas que não conseguem ser aplicadas porque cada país interpreta de um jeito diferente.
**Cara Helga,**
Agradeço, antes de tudo, sua leitura atenta e honesta. São raros os amigos que se dispõem a expor, com tanta franqueza, suas discordâncias. É nesse espírito que recebo sua crítica a Lacan — e é também nesse espírito que tomo a liberdade de lhe responder.
Você tem razão ao lembrar que Freud era médico e que a psicanálise nasceu no solo da medicina vienense. Mas é justamente a força do pensamento freudiano que o fez ultrapassar esse terreno inicial. Freud não permaneceu neurologista; ele se afastou dos paradigmas da medicina positivista e inventou algo novo: uma clínica da escuta e da linguagem. Essa invenção abriu o campo para que a psicanálise deixasse de ser um saber estritamente médico e se tornasse um saber sobre o sujeito — o sujeito do desejo, da cultura, da palavra. A própria história do movimento psicanalítico mostra que os maiores nomes da psicanálise não se limitaram ao campo da medicina: bastaria citar Melanie Klein, Anna Freud, Winnicott e, claro, Jacques Lacan.
Compreendo sua perplexidade diante de Lacan. Ele não é fácil. Sua escrita (ou fala transcrita) não se curva à clareza cartesiana, e muitas vezes beira a obscuridade. Mas não se trata de charlatanismo. Lacan acreditava que não era possível falar do inconsciente — que é, por definição, o que escapa à significação plena — com uma linguagem transparente. Sua escolha por um estilo complexo foi ética e teórica: ele tentava, a seu modo, não trair o objeto de que falava. É desconfortável, sim. Mas também é fecundo. Muitos desistem ao primeiro contato — e está tudo bem. Lacan mesmo dizia: “Não se apresse em compreender.”
Sua provocação, ainda que formulada com certo sarcasmo, me permite reafirmar com clareza a importância de Lacan para o campo psicanalítico. Ele não apenas retomou Freud, mas o reinterpretou à luz das grandes transformações do século XX: a linguística estrutural, a filosofia de Hegel e Heidegger, a lógica matemática, a antropologia estrutural. Não é pouco. E sua leitura de Freud nos permite renovar a clínica, repensar o sintoma, deslocar a escuta para além do imaginário adaptativo.
Lacan nunca escreveu uma “obra” no sentido tradicional, mas seus **Escritos** (1966) e seus **Seminários** são hoje estudados em diversas línguas e países. Neles, há desenvolvimentos teóricos fundamentais para pensar, por exemplo, o objeto a, a estrutura do desejo, a função do Outro e a noção de gozo — sem os quais a psicanálise de hoje seria mais pobre.
Você aponta ainda o risco de a psicanálise tornar-se irrelevante diante do avanço dos psicofármacos. Concordo que essa é uma ameaça concreta. Mas justamente por isso a presença de Lacan se faz ainda mais necessária: ele nos ajuda a resistir ao apagamento do sujeito pela lógica da adaptação química. O sujeito não se resume à sua neuroquímica. Ele fala, deseja, sofre — e nisso, a psicanálise tem algo de singular a dizer.
Termino com outra frase de Lacan, provocadora e luminosa:
**“O inconsciente é estruturado como uma linguagem.”**
Se é verdade que isso exige esforço, também é verdade que é ali que a psicanálise encontra sua vocação: no entrelaçamento entre linguagem, desejo e cultura.
Com afeto e respeito,
João Rego
Excelente abordagem, acessível a todos. Corajosa demonstração de “amor a humanidade”, como entendia Hanna Arendt.
Concordo com você sobre Lacan, Helga. Sobretudo depois que li o livro “Fashionable Nonsense – Postmodern Intellectuals Abuse of Science”, dos cientistas americanos Alan Sokal e Jean Bricmont.
Justifico minha rejeição a Lacan, fundamentada pela leitura das páginas 18 a 37 do livro citado. O autor abusa de conceitos matemáticos equivocados para “explicar” fatos ou fenômenos psicanalíticos. Sokal e Bricmont , verdadeiros cientistas, demonstram exaustivamente isso. Exemplo extremo: nosso órgão erétil é comparado a V-1. Uma verdadeira pulha!