Agony, 1912 by Egon Schiele

Agony, 1912 by Egon Schiele

“A psicanálise não está a serviço do bem-estar, mas da verdade…a psicanálise devolve ao sujeito a verdade de seu desejo.” Lacan in entrevista ao L’Epress 31.05.1957

Neste terceiro artigo da série, é necessário situar o campo do conhecimento da psicanálise diante de outras áreas do saber humano. Para adentrarmos nesse percurso, é fundamental compreender a visão sobre a civilização — ou seja, tudo aquilo que, ao longo de milênios, o homem vem construindo e que o distingue dos animais —, conforme Freud tão bem define em sua obra O mal-estar na civilização.

O sofrimento psíquico, ou da alma, é o preço que pagamos para vivermos em sociedade. As pulsões[1], matéria bruta do Isso[2], que incessantemente nos impõem realizações como sujeitos humanos, são contidas pela Lei, viabilizando a vida em comum.

Não é novidade a existência desse conflito entre o indivíduo, seus desejos e a sua vida em sociedade. Trata-se de um tema que, há séculos, inquieta e desafia a filosofia política. Hobbes[3], em sua obra Leviatã, já “cantava a pedra” ao descrever a condição humana anterior à constituição do Estado — o chamado estado de natureza — como uma situação de guerra de todos contra todos, na qual “a vida do homem [é] solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”.

Justifica, assim, que, sem uma instância com poder superior ao do indivíduo, a vida seria inviável. Ele se referia ao Estado com o monopólio do poder, como instituição necessária para manter a vida em sociedade. Para quem deseja aprofundar esses conceitos, recomendo a leitura de meu ensaio publicado nos Cadernos de Estudos Sociais da FUNDAJ, edição de julho a dezembro de 1995, intitulado Poder, Estado e sociedade em Hobbes e Freud: reflexões sobre Leviatã e o mal-estar na civilização.

A novidade no pensamento freudiano é o mergulho na essência do ser humano, naquilo que ele tem de mais profundo: suas pulsões, às quais estamos alienados. Freud se dedicou a decifrar seus mecanismos por meio de um constructo[4] extremamente complexo, reformulado, corrigido e aperfeiçoado ao longo de toda sua vida: as instâncias inconscientes e conscientes que nos constituem.

Ou seja, somos animais pulsionais, constituídos por infinitos desejos interditados pela Lei (o Estado, herdeiro moderno das religiões), mas que, por meio da linguagem, nos fundamos como seres humanos civilizados.

Um preço deve ser pago por essa evolução: o sofrimento psíquico, ou da alma, com suas distintas estruturas — a neurose, a perversão e a psicose.

Para a psicanálise, portanto, não há “doença” no sentido em que a medicina classifica. Há, sim, um ser humano incompleto e cindido em suas instâncias psíquicas, tentando dar conta da existência que lhe foi dada viver — amando, criando e sofrendo as dores dessa trajetória.

A arte, a literatura, bem como toda a extraordinária criação do gênero humano, inclusive o conhecimento nas mais diversas áreas, são resultantes desse conflito estrutural e interminável entre as pulsões e as infinitas combinações de desejos interditados que moldam o sujeito em sua imersão na civilização.

Alguns criam o belo — as artes, a música, a literatura, as humanidades[5]. Outros fazem as guerras e promovem a destruição do outro, denunciando o quão frágil é a camada civilizatória e sua dinâmica relação dialética, ao longo dos milênios, diante da pulsão.

As pulsões, tal como no mito da Hidra de Lerna[6], renascem indeléveis em cada novo ser humano.

Esse ser humano, que Lacan, muito depois, irá definir como “sujeito ao inconsciente”, terá de lidar, desde o nascimento até a morte, com seus afetos e desejos interditados pela civilização.

Acho que aqui, caro leitor, já deixamos clara esta premissa: para a psicanálise, a civilização é essa tênue camada que tenta dar conta — muitas vezes sem sucesso — das poderosas pulsões do ser humano. Cada vez que uma agressão de um homem contra o outro é cometida, ou que uma guerra irrompe matando milhares de inocentes, é ali que a pulsão não conseguiu ser contida, provocando uma terrível fissura em nossos valores civilizatórios — arduamente tecidos pela humanidade ao longo da história, até este século XXI.

*

Ainda não foi desta vez que entrei no artigo Inibição, sintoma e angústia, de Freud. Conto com sua paciência. Uma vez que esta série tem o objetivo de lançar luzes do pensamento de Freud e Lacan, e seus desdobramentos nos campos da cultura e da sociedade – para além da clínica -, sobre os dilemas da cultura e da sociedade contemporânea, senti a necessidade de apresentar ao leitor essas premissas sobre o conflito dialético entre a civilização e a barbárie, que funda nossa humanidade.

Até a próxima.

Bibliografia

  • FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Obra original publicada em 1930).
  • HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores).
  • LACAN, Jacques. O seminário, livro 10: A angústia. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Maria Helena Souza Patto. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
  • REGO, João. Poder, Estado e sociedade em Hobbes e Freud: reflexões sobre Leviatã e O mal-estar na civilização. Cadernos de Estudos Sociais (Fundação Joaquim Nabuco), Recife, v. 11, n. 2, p. 321–337, jul./dez. 1995.

[1] Na conferência “Angústia e instintos” (1932), Freud retoma sua teoria das pulsões distinguindo dois grupos fundamentais: as pulsões do ego (ou de autoconservação) e as pulsões sexuais. Posteriormente, ele reformula essa dualidade em termos mais abrangentes: a oposição entre as pulsões de vida (Eros) — que visam à ligação, união e preservação da vida — e as pulsões de morte — voltadas à dissolução, ao retorno ao estado inorgânico. Essa concepção dual está na base da articulação entre angústia, repressão e conflito psíquico.

[2] O Isso (Es, em alemão; id, na tradução inglesa) é uma das três instâncias psíquicas do modelo estrutural formulado por Freud em 1923. Representa o polo inconsciente da vida psíquica, sede das pulsões, regido pelo princípio do prazer e sem acesso direto à realidade. O Isso é atemporal, ilógico e impulsivo, sendo fonte constante de exigências dirigidas ao Eu.

[3] HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os Pensadores)

[4] Termo utilizado para designar uma noção teórica formulada para explicar determinado fenômeno, não sendo diretamente observável, mas inferido a partir de dados empíricos.

[5] Conjunto de disciplinas que estudam a experiência humana em suas dimensões histórica, cultural, filosófica, literária e artística, buscando compreender os sentidos, valores e formas de expressão das sociedades.

[6] Hidra de Lerna – Mitologia Grega. A Hidra era um monstro aquático com múltiplas cabeças — segundo a tradição mais comum, eram nove. Cada vez que uma cabeça era cortada, duas outras nasciam em seu lugar, tornando-a praticamente invencível.