Segui o conselho do amigo David Hulak e li o livro de Fernando Henrique Cardoso, “O Improvável Presidente do Brasil”. Na verdade, um depoimento prestado ao jornalista americano Brian Winter, revisado, complementado, e inicialmente publicado nos Estados Unidos.
Fui eleitor de Fernando Henrique em suas duas candidaturas à Presidência da República. Não por qualquer compromisso partidário, mas por havê-lo conhecido e respeitado, como intelectual, desde meu tempo de líder estudantil, quando o jovem professor era frequentemente convidado por nós para seminários e conferências. Nossos “assistentes” do velho PCB nos diziam: “Foi nosso companheiro por um tempo, sempre nos demos bem com ele”. Acho até que, só mesmo por casualidade, um intelectual do seu porte, a princípio sem manhas de palanque ou de conchavos, pôde chegar à chefia do nosso Executivo. E por essa razão o título do livro, no original, me parece mais adequado: “The Accidental President of Brazil”.
Considero – com todo o respeito aos amigos ainda deslumbrados com a retórica dos seus adversários, hoje no poder – que FHC foi um dos três presidentes mais importantes da nossa história republicana, ao lado de Vargas, que, com Volta Redonda, Petrobrás e a CLT, lançou as bases da industrialização brasileira, e de Juscelino, que a dinamizou. A Fernando Henrique coube modernizar a máquina administrativa nacional, estabilizar a economia e preparar o país para o desafio da globalização. E espero viver o bastante para ver a confirmação desse entendimento, pelo juízo da História.
O livro é de leitura agradável, e traz muitas revelações dos bastidores da luta democrática contra o Governo Militar, dos vagidos da Nova República nascente, e da campanha pela concepção e implantação do Plano Real. E também das articulações internacionais do autor, que se pôs ao nível dos maiores chefes de Estado mundiais, elevando o conceito do nosso país lá fora.
Mas devo fazer dois reparos ao texto. O primeiro na página 63, em que o registro do atentado contra Carlos Lacerda, em agosto de 1954, parece divergir do que os jornais reportaram e a História consagrou. Lacerda não foi baleado no pé dentro do seu carro, nem o Major Rubens Vaz ferido mortalmente ao tentar fugir. O grupo de pessoas estava na calçada, e o major foi atingido por engano, ou por tentar reagir, como preferiu registrar o bom filme recém-exibido sobre Getúlio. Mas esse possível lapso não é importante.
Importantes são as referências feitas, nas páginas 126 e 127, às ações dos combatentes armados contra a Ditadura Militar, pelo juízo moral e político que implicam. Fernando Henrique afirma que “pequenos grupos guerrilheiros…lançavam bombas, assaltavam bancos e sequestravam políticos e empresários, acreditando que esse tipo de heroísmo derrubaria o governo”. Mais adiante, faz referência aos sequestros de embaixadores com o mesmo objetivo, equivocando-se, incidentalmente, na sequência dos sequestros mencionados.
Ora, com poucas e desonrosas exceções, como o infeliz atentado do Aeroporto dos Guararapes, os guerrilheiros urbanos não jogavam bombas, “expropriavam” bancos. As bombas sempre foram apanágio do terrorismo de direita, como no Riocentro e na carta assassina que vitimou a humilde secretária da OAB. Tampouco sequestravam empresários: o caso Abílio Diniz foi obra de estrangeiros, vestindo camisas do PT, na maliciosa versão divulgada à época. E os sequestros de embaixadores tinham um objetivo específico: livrar da cadeia e da tortura militantes presos. Embora politicamente inócuas, quantos martirizados devem a vida a tais operações?
Opositores da Ditadura Militar por variados métodos, hoje todos voltamos olhares críticos para o passado, procurando colher as lições da História. Essas nuances conceituais podem até ser irrelevantes para o público norteamericano. Mas não para nós, companheiro Fernando Henrique.
o clemente! você me- deu um susto, esse foi o pior de todos os presidentes, chamou o povo de vagabundo, sociólogo escreveu sobre o socialismo e depois mandou todos esquecerem o que tinha escrito! sem comentarios
Clemente,
Seu texto é uma página de sensatez. Em breve retrospectiva republicana, vejo o Brasil como país que aprendeu consigo mesmo nos recentes sessenta anos. Depois da distensão, veio a eleição direta, o impedimento de presidente e a posse regular do vice, a estabilidade econômica, a política social e a frustração gerencial.
A perspectiva histórica mostra o legado de Fernando Henrique. Ensejando a chance de política redistributiva. A história mostra também como foi equilibrada sua política externa, fiel ao profissionalismo respeitado do Itamaraty.
O outono nos faz bem.
Estima do
LO
Concordo com os reparos de Clemente Rosas aos equívocos contidos no livro de Fernando Henrique e Brian Winter. Como bem observa o autor, os erros talvez fossem desimportantes em texto dirigido a leitores estadunidenses mas são inadmissíveis na edição brasileira; sobretudo, nas referências aos trágicos eventos da luta armada contra a ditadura, por passarem impressões errôneas e dolorosamente injustas quando ao que de fato ocorreu naqueles ‘anos de chumbo’.
Permito-me, também, apor um ‘reparo ao reparo’: creio precipitada a inclusão de Fernando Henrique entre os três principais chefes de estado do Brasil; há que decantar no tempo seus feitos para melhor compreender sua presidência.
Dos três sucessos referidos pelo articulista só a modernização da máquina estatal parece-me indiscutivelmente um êxito do interregno 1995-2002.
A estabilização da economia começou no ano anterior e foi antes obra conjunta de um grupo de economistas e outros intelectuais e executivos governamentais (inclusive Fernando Henrique), que agiram sob a liderança do então presidente Itamar Franco, que assumiu a responsabilidade de desencadear o processo estabilizador. A Fernando presidente coube manter e adaptar às condições subsequentes o Plano Real, que herdou do antecessor — sem cujo apoio, aliás, não teria sido presidente.
Já a preparação do país para a globalização, se mérito teve, eivou-se de graves equívocos e desvios — equívocos quanto à essência do processo de privatizações, desvios na forma e meios utilizados naquele processo.
A concluir: é cedo, eu creio, para avaliar com isenção o governo de Fernando Henrique. Talvez se devam creditar-lhe acertos até maiores que os citados, assim como desacertos ainda não devidamente aquilatados.
Respondo aos três amigos que me brindaram com os seus comentários.
Nelson Marinho: Você me parece “de cabeça feita” contra FHC, apesar de muitas evidências da qualidade do seu governo, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, a criação da Corregedoria Geral da União, a instituição dos exames de avaliação das nossas universidades e do nosso ensino médio, a quebra das patentes de remédios contra a AIDS (obra de José Serra, o economista que foi o nosso melhor Ministro da Saúde, até hoje), sem falar no Plano Real, que começou no Governo Itamar, mas com Fernando Henrique como Ministro da Fazenda.
Não tenho a pretensão de abalar, em tão poucas linhas, as suas convicções, que suponho sejam anteriores a qualquer exame mais frio dos fatos. Mas, pelo menos, apelo para que não as fundamente em informações eqiuivocadas. FHC não chamou o povo de vagabundo. Ele referia-se apenas àqueles servidores públicos que, antes da fixação de uma idade mínima para a aposentadoria, aposentavam-se aos 50 anos, e até menos, por obra e graça dos artifícios que permitiam acréscimos à conta dos 35 anos de trabalho, como licenças-prêmio não gozadas, etc. Eu, servidor público a maior parte da minha vida, me aposentei aos 61 anos,quando já podia tê-lo feito pelo menos cinco anos antes, e concordo inteiramente com ele. A frase de FHC foi infeliz, até por ter dado margem a essa esploração manhosa, mas não deixa de ser verdadeira.
Por outro lado, ele nunca pediu simplesmente que esquecessem o que havia escrito, e desmente isso no livro que li e comentei. Onde está o texto com tal afirmação?
O que fizeram com ele, nestes dois casos, não é novidade. Lembremos Goebells, o homem da propaganda do Nazismo, que dizia que uma mentira repetida mil vezes ganha foros de verdade. E também a infâmia que cometeram com o velho Prestes, figura lendária, que sempre mereceu o respeito de companheiros e adversários, a quem atribuiram a afirmação de que, em uma guerra entre o Brasil e a União Soviética, ficaria ao lado desta…
Luiz Otávio: Só tenho que agradecer seu comentário inteligente, agregando valor ao meu texto, com novos “insights”. Tem razão, amigo: o outono nos fez bem a ambos, entre outras coisas, aproximando nossos pensamentos.
Marco Antônio Pontes: Correta a sua ressalva de que o Plano Real começou no Governo Itamar. Mas o Fernando Henrique foi o seu Ministro da Fazenda, que, mesmo sendo sociólogo, reuniu a equipe de economistas brilhantes que concebeu o Plano. E como Presidente,completou o trabalho, resistindo a todas as pressões para descaracterizá-lo. A Itamar, por uma característica que alguém rotulou de “excelência da mediocridade”, cabe o mérito de tê-lo nomeado e conferir-lhe a tarefa.
Sobre as privatizações, nem os seus sucessores do PT, que tão ferozmente as combateram, se dispuseram a desfazê-las, mantendo, ao contrário, a mesma política, só que com outras roupagens. E considerações sobre o preço pago pelas estatais têm um certo grau de romantismo: o preço “justo” acaba sendo mesmo o que o mercado quer pagar por elas. O essencial é que nenhuma delas pode ser considerada em situação pior à que se encontrava antes.
Termino com uma concordância e um agradecimento pelas sensatas ponderações: vamos esperar o juízo da História, com a convicção de uma verdade que nenhuma referência leviana pode esmaecer: o tempo é o senhor da razão.
Clemente, como diria o velho Pasquim, falou e disse. Uma correção: a equipe de economistas brilhantes, do Rio, já estava reunida há bom tempo, com a concepção do Plano Real bem delineada e talvez FHC tenha tido essa informação. Como se sabe, Itamar nomeou e demitiu vários ministros antes de escolher FHC e o fez, não por ele ser um especialista de economia, mas por ser uma reserva moral da nação, conhecer pessoas e ter a visão da política econômica necessária para quebrar o abominável ciclo inflacionário que predominava no país. Daí, já como ministro, convocou aqueles economistas para finalizar e implementar o plano. Que funcionou e restabeleceu a vitalidade da economia nacional. Porém, teve uma falha grave, já na gestão presidencial de FHC, que foi a adoção do câmbio fixo por Pedro Malan, que só Armínio Fraga, tempos de prejuízo depois, conseguiu banir. Isso custou a eleição de Serra. Que custou outras reformas previstas e descartadas, como a política, a fiscal, a educacional, a trabalhista, entre outras. Isso posto, FHC foi sim um dos três únicos estadistas da nossa república, ao contrário do que Marco Antônio Pontes imagina, pois os efeitos de suas principais medidas, como o Plano Real, a Lei de Responsabilidade Fiscal, o Programa de Privatizações, podem ser verificados e comparados facilmente.
Perfeito, Wagner! Seus comentários enriquecem o meu texto. A equipe do Plano Real já vinha trabalhando. Digamos que F. Henrique, como Ministro da Fazenda, a prestigiou, estimulou e fez chegar à proposta final.
E como ninguém é perfeito, cito outro erro do Governo FHC, para mim o único grave: a extinção precipitada da Sudene, de cambulhada com a Sudam, por má informação e talvez algum espírito preconcebido em relação ao Nordeste. A Sudam – afirmo por conhecimento próprio – nunca foi séria, e seus desvios eram institucionalizados. Quanto à Sudene, na gestão do General Nilton Rodrigues, todas as irregularidades (pontuais) já haviam sido sanadas, e os aproveitadores estavam tendo seus projetos cancelados e sendo intimados a devolver recursos irregularmente aplicados. Como procurador geral da autarquia, eu estava envolvido diretamente com isso. A extinção só fez tumultuar esse processo, levando todos os casos para a vala comum da Advocacia Geral da União. E a este seu amigo aqui à aposentadoria, retardada até então, por uns cinco anos, pela minha convicção da importância do que estávamos fazendo.