Para Gorki, meu cão.
Somos constituídos por desejos. Essa é a nossa essência. Se o desejo só é possível como falta, então podemos inferir que somos sujeitos em busca desesperada e incessante de algo que supra esta falta. Buscamos um sentido possível para nossa existência. O Objeto entra nesta relação para tamponar a angústia do vazio que nos funda como humanos.
Através das identificações, em uma relação de objeto, fluem nossos afetos e com eles nos agarramos a nossa existência, construindo e reconstruindo, as vezes fortes, outras vezes fracos, vínculos de amor. Deles nos alimentamos, permitindo-nos, em alguns momentos, um sentimento de êxtase e completude, mesmo que fugaz. É assim com uma paixão entre os amantes; é assim com uma “revelação divina”; uma ideologia; com a fruição de uma obra de arte, uma droga ou um vício que nos sustenta.
Nosso inconsciente, estruturado como uma linguagem, brinca conosco, fazendo nos apaixonar sem termos pistas de como foi forjada essa paixão; nos deixa ser capturados por uma ideologia ou religião, muitas vezes por um discurso carregado de significantes, sobre os quais não temos nenhum controle. Somos alienados de nós mesmos. Nosso Eu é um mero objeto desse desejo inconsciente que funda e opera nossa existência. Para a psicanálise, o Eu é o universo supremo das alienações.
Sou onde não penso, e penso onde não sou. ( Lacan)
Esta complexa operação só é possível através da linguagem. O sujeito ao inconsciente é aquele vazio que possibilita o deslocamento da cadeia de significantes.
Toda palavra carrega em seu bojo o desejo. (Freud em A Interpretação dos Sonhos.)
A linguagem nos atravessa como portadora do desejo nos constituindo, fazendo efeito transformador em nosso espírito.
A perda do objeto amado — sim, a morte é uma companheira inseparável da vida, embora significante inacessível à nossa consciência — nos causa uma fragmentação interior, pois aquilo que achamos que somos (o Eu), onde atua nossa consciência, está impregnado, comprometido, ancorado nessa relação libidinal com o objeto amado. A perda desse objeto que nos constitui, quer seja pela “visita” inesperada da morte de um ente querido, uma doença debilitante e prolongada, ou ainda um simples abandono do amado, nos projeta de volta ao vazio, ao luto, ao sofrimento.
O Eu é uma decantação das nossas relações libidinais vividas por nós: amores perdidos, ideais abandonados, enfim, restos passados, presentes e latentes, estabelecidas por meio das identificações que nos constituíram, desde nossa pré-história, quando éramos ainda puro desejo dos nossos pais, antes mesmo da nossa existência biológica, não cessando de tecer-nos ao longo da nossa vida.
Penso que existem duas importantes instâncias que nos envolvem tentando solucionar esta angústia: a primeira é a religião, que situa o homem diante do Universo como herdeiro de um Pai absoluto que a tudo controla e tudo vê, inclusive nos possibilitando a expectativa de uma existência após a morte; a outra são as ideologias políticas – que em alguns casos têm uma enorme e perigosa área de intersecção com a religião – nos dando a “certeza cega” para um sentido em nossa existência aqui na terra. O grande problema dessas instâncias é que sempre há furos em seu conjunto, sendo o mais grave deles – uma vez que estou em meu terreno seguro, sei que vou ter vida após a morte e sei que minha ideologia é a melhor para a sociedade – a impossibilidade de aceitar a diferença que há no outro.
Distancio-me do outro por fazer parte de um sistema “cego de certezas”, fechado, completo e esse outro, se eu não cooptá-lo ou convertê-lo, devo destruí-lo, pois é uma ameaça ao meu “castelo de cartas” tão bem elaborado ao longo dos séculos – no caso da religião -, ou das ideologias, estas, fenômeno mais recente. Foi assim com o judaísmo, foi assim com o cristianismo, foi assim com o nazismo, com o stalinismo, com os crimes de homofobia e contra minorias raciais, e por aí vai.
Vemos, estarrecidos, os fundamentalistas do Grupo Estado Islâmico (EI) construindo seu universo ideológico-religioso degolando o “outro” em frente das câmeras, ou queimando-o vivo, dentro de uma jaula, numa dolorosa prova de realidade para nós, de que o processo civilizatório, que tanto evoluiu nestes últimos milênios, não segue uma linha ascendente e contínua. Assim como o sintoma psíquico irrompe com intensa angústia demandando uma fala que mate “a coisa”, a barbárie surge abruptamente, a cada guerra, a cada morte violenta de um homem contra outro homem, desafiando nossa compreensão sobre a humanidade.
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Recife, 11 de março de 2015.
Muito interessante a analise utilizando conceitos psicanalíticos para interpretar os diversos fanatismos que são a base para o autoritarismo e para o terror.
Às vezes, nas esquinas da noite fria e chuvosa, esperançava esbarrar no meu própria eu só para perguntar: por que eu? Mas, continuo sozinho comigo mesmo tentando conhecer o eu. “Tamponar a angústia do vazio”. Só especiais escritores brincam com as palavras, qual fazes, João. Abraços.
Seu jogo de palavras, me deixou procurando meu eu nos meus eus. Esse jogo de palavras nos
faz, realmente, pensar, sem o trocadilho de cima, pensar no nosso EU.
Parabéns e trovabraço.
Fiquei tonto ao fim do artigo. Fantástico quando fala do desejo e da falta (ou melhor, assustador), mas do meio pro fim viajei….
Gostei.
Caro Afrânio:
Desejo como falta já estava nos gregos (há! turminha sabida!!). A psicanálise se apropria de vários conceitos da filosofia para tentar compreender os mecanismos que forjam nossa essência. Só desejamos aquilo que não temos, uma vez obtido, a “roda roda” e deslocamos nosso foco para outro objeto. Morre-se quando cessa de desejar- o que é o estado da depressão, uma morte em vida.
Esse texto fica mais fácil se sempre entendermos que estamos falando sobre o sujeito da psicanálise que é diferente do indivíduo (aquele que o IBGE conta de casa em casa). Esse sujeito – diz-se sempre sujeito ao inconsciente, numa subordinação contra a nossa vontade, a instância essencial do nosso ser.
É um sujeito que se constitui como uma falta estrutural no momento que, ainda na sua pré-infância, rompe sua relação fusional com o corpo da mãe, com a imprescindível ajuda da interdição da função paterna. O Pai entra nesta relação para nos mostrar que somos um segundo nessa relação de amor com a mãe – lembra de Kronos? Ele ( o Pai) castra a mãe do seu falo, o filho.
É através dessa operação (ou da sua falta) – que lembro, não é do plano da consciência – , forja-se nossa estrutura psíquica, que levaremos do berço à cova: neurótica ou psicótica.
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Caros Nealdo e Carlos Pinheiro:
Sobre “Sou onde não penso, penso onde não sou”, é um aforisma de Lacan “curto e grosso” para demonstrar a quebra do narcisismo que Freud causou à humanidade. O primeiro foi Copérnico demonstrando que nós não éramos o centro do Universo; aí a teologia tenta nos consolar, “Bem, pelo menos somos a imagem e semelhança de Deus”; aí vem Charles Darwin demonstrando que viemos da evolução dos animais; a filosofia tenta nos consolar nos elevando – apesar de animais – ao cume da racionalidade e dono do nosso destino porque pensamos: “Penso, logo existo!”, disse Descartes. Até que Freud, com a descoberta do inconsciente e sua estruturação como uma linguagem (Lacan) destrói este último reduto confortável da nossa humanidade. Aquela “Brastemp” que pensamos que somos, quando nos olhamos no espelho, é o Eu, o universo da alienação, posto que efeito das formações inconscientes que nos forjam – a cada respirar, a cada caminhar da nossa existência. Inquieto, sempre em busca de uma completude que nunca chega, mas é por conta deste vazio estrutural que amamos, criamos e vivemos.
DESEJO não é falta, não somos essência e jamais suportaremos identidades….abraços amigos