Pensando bem, de onde vem a bala perdida? Cada dia mais, vítimas inocentes são alvo de balas atiradas a esmo e são “achadas” por essas balas. Quem “perde” essas balas, que matam pessoas não envolvidas diretamente com a criminalidade e com a repressão ao crime organizado? São crianças, mulheres, jovens, e, até mesmo, idosos, em sua maioria, que estão em seus espaços privados ou se encontram nas ruas, quer em passagem, no ponto de ônibus, ou mesmo nas ruas.
O Brasil ocupa a segunda posição, na América Latina, de casos de mortes por balas perdidas, perdendo apenas para a Venezuela. Só no Rio de Janeiro, no ano de 2014, foram registrados catorze casos de homicídios por balas perdidas, fora os que sofreram ferimentos e não morreram.
Assim como outros tipos de violência, as balas perdidas estão associadas ao nível de beligerância da sociedade. O Brasil tem se mostrado um país violento, onde as mortes que se associam a práticas de violência são assustadoras, representando a maior causa entre jovens de 12 e 30 anos.
As mortes e ferimentos por balas perdidas têm como origem, na maioria dos casos, a intervenção da polícia, como, por exemplo, em perseguição a supostos criminosos, o que representa 27% das ocorrências. A troca de tiros entre gangues e quadrilhas de traficantes são responsáveis por 24% dos casos, seguido por tiros trocados durante assaltos, que correspondem a 20% das agressões. Os conflitos interpessoais, como brigas entre amigos e/ou inimigos, quando ocorrem tiros, atingem em 10% outras pessoas que estão nas proximidades e que não estão diretamente vinculadas aos conflitos.
No entanto, em boa parcela dos casos de pessoas atingidas por balas perdidas, não se consegue determinar oficialmente a origem e as causas dos disparos, o que torna a violência de impossível responsabilização dos culpados.
São balas que resultam de tiroteios que cruzam os morros e as periferias das cidades, numa luta sangrenta pelo controle da força, pelas gangues organizadas, principalmente pelo tráfico de drogas; ou da luta travada entre gangues e policiais, que participam de busca e apreensão de drogas e de traficantes, muitas vezes sem fazer a distinção entre a quem buscam e os outros cidadãos que habitam o mesmo espaço.
A bala disparada por um policial que atinge uma pessoa sem atitudes que possam justificar um ato de tal amplitude de violência, clama aos poderes uma justificativa. Como nós, cidadãos, que pagamos para a polícia nos proteger, somos por ela agredidos? Aí reside o nó da questão…
Na semana passada o Brasil inteiro ficou chocado com a morte do menor Eduardo Jesus Ferreira, de dez anos, que foi atingido por uma bala que partiu da arma de um policial do Batalhão da Polícia Militar que faz patrulha na UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) do Complexo do Alemão, que é formado por quinze comunidades e onde vivem setenta mil pessoas. O que fazia o garoto? Brincava na escadaria próxima à sua casa. Segundo declarou o seu pai, eles sempre foram ameaçados pela polícia, que age no local de forma truculenta, com militares despreparados e mal treinados para a defesa dos moradores e contra o crime organizado mantido pelo tráfico de drogas. Ele ainda afirma que nunca foi, nem ele nem a sua família, ameaçados pelos “bandidos”, mas, por outro lado, sempre foram perseguidos pela polícia, que sai atirando em quem estiver pela frente.
Nesse sentido, pode-se até pensar que a repulsa à ação da polícia e a tentativa de controle da violência nas comunidades do Rio de Janeiro decorreria do fato de antes dessa ocupação existir uma certa “paz” sob o domínio dos bandidos, mesmo sendo essa “paz” um artifício que vigora sob uma dominação mais autoritária e violenta do que a praticada pelo Estado. Contudo, para a percepção da comunidade, a violência está mais associada à polícia, que entra com suas armas e seus carros blindados promovendo troca de tiros e desafiando a tranquilidade dos moradores, caso que fica bem ilustrado com as mortes do dançarino do programa Esquenta, da rede Globo, e do Amarildo, ambas amplamente noticiadas pela imprensa e pelas redes sociais.
A grande crítica que se faz ao serviço de segurança prestado pelo Estado é que ele é insatisfatório, servindo mal à população e protegendo apenas um segmento da população privilegiada. Seria uma forma de o Estado fazer guarda e segurança de uma classe média dos perigos que apresentam os pobres, considerados por princípio perigosos e criminosos. A polícia teria, assim, o poder de definir quem é o cidadão de bem e quem é o bandido, o que confirmaria a hipótese de que o Estado se faz presente nas áreas periféricas das cidades, apenas, como repressor, através de armas, de forma agressiva, repressiva e autoritária.
A manifestação popular realizada no final da semana passada no Complexo do Alemão expressa essa insatisfação popular com a segurança oferecida pelo Estado. Nessa manifestação, que ocupou as principais ruas daquela comunidade, participaram vários segmentos da população local, dos movimentos sociais e da igreja, que gritavam palavras de ordem para que a polícia deixasse o Complexo em paz e se retirasse.
A repulsa à presença do Estado abre espaço para a ação de cooptação de segmentos dessas comunidades pelos traficantes de drogas, que impõem regras, mesmo que autoritárias, oferecendo em troca do silêncio garantias de segurança, acesso a algumas benesses e assistência social. É aí onde eles conseguem recrutar facilmente novos membros, com a promessa de dinheiro e acesso a consumo conspícuo, silenciando assim as pessoas, que se negam a fazer denúncias, mesmo quando a bala tenha sido disparada pela arma de um bandido.
Quase simultaneamente ao caso da bala perdida que vitimou Eduardo de Jesus, outra bala perdida atingiu a cabeça de uma garota de sete anos que brincava na rua onde mora a sua avó, na Cidade de Paulista, em Pernambuco. Diante do desespero da família e dos moradores do local, nada se viu, nada se sabe sobre quem compunha as gangues que entraram em confronto, longe da vista do Estado e de outros segmentos organizados da sociedade.
São balas e balas, não perdidas, mas, esquecidas, quando o Estado trata com balas mortíferas a sua ausência no papel de promover a qualidade de vida dos cidadãos, que vivem sem ter atenção às suas carências coletivas básicas, como educação, dignidade de moradia, serviço de saneamento básico, atenção à saúde, ao lazer, e, a esta altura, segurança. Quando o Estado está ausente, por favor, chame o ladrão.
Ilustre articulista Ester Aguiar.
Assustadora a estatística mostrada no 4º parágrafo do seu artigo, onde, 27% foi disparada pela polícia no combate ao crime. Mas na verdade, a maior “bala perdida” está explícita no último parágrafo do artigo. Essa sim, disparada por quem pode evitar que o gatilho seja acionado.
Trovabraço
Ester: tenho observado com prazer que você removeu a caneta do armário e passou a expor publicamente o que pensa. Queria ressaltar brevemente duas questões implicadas e até explícitas no seu artigo: o mito do Brasil país incruento contraposto à nossa violência e autoritarismo e a corrupção da linguagem. Aquele, o mito, encobre ou reprime a violência que você denuncia no seu artigo; esta, a linguagem, serve à mesma função banalizando a violência, que tende a se tornar insensível. Pergunto à corrução da linguagem: que fatos estão por trás da bala perdida? Vá dizer a uma mãe ferida pela dor ou à família de uma criança assassinada que ela foi vítima de uma “bala perdida”…
Adoro seus artigos! É excelente a sua análise e você escreve divinamente bem! Só não culpo tanto os policiais porque acredito que eles, como nós todos, também são vítimas do Estado!