Fernando da Mota Lima

Sabres e Utopias, recente coletânea de artigos e ensaios de Mario Vargas Llosa, reúne em mais de 400 páginas substanciosa e variada amostragem da sua obra de intelectual público empenhado em questões políticas e culturais. O critério de seleção adotado pelo prefaciador do volume, Carlos Granés, privilegia a política e o combate ideológico em detrimento da literatura. Esta é inserida na coletânea já no capítulo final intitulado “Os Benefícios do Irreal: Arte e Literatura Latino-americanas”. Além de Borges, Octavio Paz e outros poucos escritores hispano-americanos, comparecem os brasileiros Euclides da Cunha e Jorge Amado.

Saliento, todavia, que Vargas Llosa bem pouco considera a literatura compreendida no seu sentido estrito. Já aludi num outro artigo a essa característica tão marcante em romancistas de renome como Vargas Llosa e José Saramago no debate público da cultura. Embora prioritariamente escritores literários, o fato é que quase sempre se pronunciaram sobre questões políticas e ideológicas. A literatura importa, em termos práticos, apenas como aval ou credencial de sucesso para que intervenham na cena cultural contemporânea.

O que Vargas Llosa escreve acerca de Euclides da Cunha e Jorge Amado, também de outros escritores literários, amplia no campo estético suas obsessões político-culturais enraizadas na América Latina. Noutras palavras, lê Os Sertões, por exemplo, antes de tudo como uma das manifestações supremas dos males típicos que infestam nossas sociedades herdeiras do colonialismo ibérico, do misticismo obscurantista, do nacionalismo estatizante e parasitário, das ditaduras e da corrupção endêmicas apoiadas em ideologias que mantêm o conjunto da América Latina na periferia da modernidade e do autêntico liberalismo democrático.

O que é afinal o liberalismo há décadas ardentemente postulado por Vargas Llosa como solução para os problemas crônicos indicados no parágrafo precedente? A pergunta se impõe em face das incompreensões contra ele dirigidas no conjunto dos países latino-americanos. No Brasil, para ficar no nosso terreiro, o conceito do liberalismo é frequentemente deformado na mídia e no que se pode ainda qualificar como debate de ideias. Basta que se pense no abuso com que se emprega sua variante, neoliberalismo. Este é sempre usado não como um conceito, mas simplesmente um insulto ideológico, uma forma de se desqualificar sumariamente um político, uma orientação política ou ainda uma opção ideológica. Sobre esta revista já ouvi pessoas inteligentes e informadas desqualificá-la por “ser de direita”. Criticar o PT é para muitos odiar os pobres ou recair no moralismo da extinta UDN. É claro que quando Lula, o barbudo raivoso, e Marilena Chaui esbravejavam na mídia contra todo tipo de corrupção, quando assim procediam não eram moralistas no sentido desprezível do termo. O mais grave é que essa corrupção da linguagem política anula em princípio qualquer possibilidade de debate de ideias efetivo.

Mas voltemos a Vargas Llosa. Esclarecer a noção de liberalismo que adota e propõe como solução para a América Latina, cuja história é saturada por ditaduras recorrentes, é já um meio de melhor situar nossas turvas disputas relativas a conceitos políticos fundamentais. Os textos chave do livro que comento no que se refere ao liberalismo do autor são “Confissões de um liberal” (páginas 299-308) e “Ganhar batalhas, não a guerra” (páginas 245-58), ambos incluídos na seção  relativa à democracia e ao liberalismo na América Latina.

Destaco e adiante comento estes textos porque nos ajudam a melhor compreender o liberalismo adotado por Vargas Llosa e também, à parte variantes acidentais, Octavio Paz, a quem dedica um belo artigo intitulado “A Linguagem da Paixão”, e José Guilherme Merquior. Cito nominalmente estes por se distinguirem há décadas entre os grandes intelectuais latino-americanos na defesa de políticas liberais como solução gradual para os problemas crônicos de atraso e subdesenvolvimento que tanto marginalizam nosso subcontinente no contexto do capitalismo globalizado. Assim procedendo, opuseram-se corajosamente ao que o comunismo cubano representa como expressão de caudilhismo político e violação sistemática dos direitos humanos. Quando lembramos que a maioria dos nossos intelectuais, dentro e fora das universidades, ainda reluta em tomar posição contra o comunismo cubano, para não mencionar os que simplesmente insistem em apoiá-lo, não é de espantar que sua postura liberal tenha provocado tanta incompreensão crítica, não raro também intolerância caluniosa. Embora combatam com igual veemência as ditaduras de direita, este fato, como seria previsível, não os isenta dos ataques procedentes de ambos os lados. Afinal, esta é uma verdade tão antiga quanto a política: quem ousa opor-se aos extremos acaba apanhando de ambos.

“Confissões de um liberal” é o texto de uma palestra proferida por Vargas Llosa no American Enterprise Institute for Public Policy Research na oportunidade em que lhe foi outorgado o prêmio Irving Kristol. Depois de salientar que pela primeira vez, ao lhe conferirem o prêmio, lhe reconhecem a unidade ou coerência que sempre procurou realizar entre o homem e a obra, na literatura quanto na identidade política, Vargas Llosa acentua a imprecisão do conceito de liberal.

Começa por fixar a distinção observável no emprego do termo na tradição anglo-saxônica e na América Latina – também na Espanha, país que há anos lhe concedeu cidadania quando foi expatriado do Peru por combater uma de suas ditaduras costumeiras. Na primeira o termo tem conotações de esquerda, sendo por vezes associado ao socialismo e ao radicalismo político. Já na segunda tradição o termo sofreu um processo singular de perversão semântica, sobretudo quando consideramos sua última variação, o neoliberalismo. No Brasil ele se converte num insulto ideológico, repito, pois o neoliberal é sempre visto como um conservador ou reacionário, adepto desprezível de toda política privatista geradora da opressão imposta aos pobres do mundo. Em suma, é um chavão usado em bloco por todo esquerdista de sindicato ou militante acadêmico. Aliás, essa deformação semântica vai bem além desses grupos de configuração ideológica mais nítida. Ela contamina todo o nosso debate político, se é possível usar ainda esta expressão. Bastaria lembrar o clima de intolerância e maniqueísmo que dominou a última disputa presidencial. Confundir o liberalismo de Vargas Llosa, Octavio Paz e Merquior, por exemplo, com as políticas adotadas por gente como George Bush, ou com a política externa norte-americana tout court, é mais que um erro de apreciação ideológica, é incorrer na corrupção leviana da linguagem política.

O conceito se torna ainda mais turvo quando os próprios que se definem como liberais divergem entre si, como é aliás frequente. Melhor dar a palavra ao próprio Vargas Llosa, que num parágrafo exemplar ressalta os traços fundamentais do liberalismo que defende:

“Como o liberalismo não é uma ideologia, ou seja, uma religião laica e dogmática, mas sim uma doutrina aberta que evolui e se adapta à realidade em vez de procurar forçar a realidade a se adaptar a ela, há entre os liberais várias tendências e profundas divergências. No que diz respeito à religião, por exemplo, ou aos casamentos entre pessoas do mesmo sexo, ou ao aborto. Assim, os liberais que, como eu, são agnósticos, partidários da separação ente Igreja e Estado e defensores da descriminilização do aborto, bem como do casamento homossexual, são às vezes criticados com dureza por outros liberais que, nesses assuntos, pensam o contrário de nós. Tais divergências são saudáveis e produtivas, pois não ferem os pressupostos básicos do liberalismo que são a democracia política, a economia de mercado e a defesa do indivíduo frente ao Estado”. (p. 301).

A citação um tanto longa parece-me bem esclarecedora do liberalismo adotado por Vargas Llosa. Ele consiste fundamentalmente na afirmação integrada dos três pressupostos anotados ao final do parágrafo. Compreendendo-os de forma integradora, não incorre na adoção do liberalismo puramente econômico, que tudo entrega às forças do mercado. Pelo contrário, critica em termos veementes esta forma parcial de liberalismo, que na sua perspectiva precisa associar-se à democracia política. Como afirma sem meias palavras, o que distingue a civilização da barbárie não é a liberdade de mercado, não importando o quanto seja eficiente, mas a cultura consistente de um corpo de ideias, valores, crenças e costumes compartilhados em termos democráticos. Se o mercado for entregue a suas forças competitivas cegas, produzirá riqueza, mas sempre ao preço de uma batalha darwiniana, como frisa citando em seguida Isaiah Berlin, um dos teóricos supremos do liberalismo: “os lobos comem todos os cordeiros”.

Além de ressaltar a liberdade como expressão maior do liberalismo que postula, Vargas Llosa coerentemente sublinha a defesa fundamental do indivíduo perante os poderes do Estado. É em nome desse valor supremo, a liberdade individual, que assinala a tolerância como medida civilizada da nossa relação com o outro, sobretudo o outro que nos nega, que pensa diferentemente de nós. Afinal, é fácil concordar com quem conosco concorda. A liberdade individual e a tolerância cívica se expressam antes de tudo diante do diferente, do que pensa diferentemente de nós. Como disse Rosa Luxemburgo, uma comunista libertária, a liberdade é sempre e exclusivamente a liberdade de discordarem de nós.

O problema do comunismo, para aludir aqui a uma ideologia de esquerda que exerceu e exerce ainda poderosa influência sobre os intelectuais e camadas mais críticas das sociedades ocidentais, é que ele, pelo menos em termos práticos, baseou a liberdade na realização da igualdade econômica, além de abolir o Estado burguês embalado pela utopia da extinção do Estado de classe. Ora, o que ele de fato realizou foi a instituição do Estado totalitário a partir do momento em que suprimiu as liberdades civis sob o pretexto de que não passavam de liberdades burguesas. Isso é tão verdadeiro que os melhores comunistas brasileiros precisaram amargar no nosso país uma ditadura militar para aprenderem a importância dessas liberdades, que não podem ser confundidas com valores da classe burguesa. Elas representam nossa defesa última contra o poder do Estado que ameaça nossa autonomia individual.

É dentro do contexto acima que me inquieta, numa dimensão em último caso política, a difusão de uma cultura narcisista, votada ao espetáculo do consumo hedonista, que induz as pessoas a renunciarem à sua liberdade, à defesa de sua vida privada que, reitero, constitui nossa defesa última contra os poderes do Estado. Essa renúncia é bem patente neste trocadilho penetrante: evasão da privacidade. Rendidas ao desejo de aparecer, de usufruir os 15 minutos de fama cronometrados na famosa boutade de Andy Warhol, as pessoas tudo negociam para conquistarem uma ilusória sensação de importância passível de removê-las das vidas insignificantes que sofrem. Essa renúncia à liberdade individual, servilmente negociada no palco ou passarela onde desfilamos nosso narcisismo insaciável, constitui, no meu entender, uma das mais graves ameaças à liberdade no mundo em que vivemos. Portanto, não é por motivações estreitamente moralistas que a critico, mas por considerar o valor político que em última instância encerra.

Vargas Llosa dedica alguma atenção à cena política e cultural brasileira quando de algumas passagens pelo país. Louva a política liberal adotada por Lula – o que é fato, não obstante o foguetório retórico deste e de muitos que o apoiam – ao mesmo tempo em que duramente o critica pelos passos mais desastrosos de sua política externa. Para ser mais preciso: critica-o quando posa sorridente ao lado de Fidel Castro, emprestando assim apoio público ao ditador no momento em que este golpeava de morte os direitos humanos de prisioneiros políticos da ilha. O melhor da era Lula, sobretudo durante seu primeiro mandato, foi retomada ou prolongamento da política de liberalização do mercado antes adotada por Fernando Henrique. É claro que nenhum petista servil à ideologia admite este fato.

É sem dúvida admirável a tenacidade com que, ao longo de uma longa vida, Vargas Llosa combate em defesa da liberdade compreendida dentro dos termos liberais que procurei esboçar neste artigo. O melhor evidentemente é o leitor conferir com seus próprios olhos os fundamentos do liberalismo que adota atentando em particular para os dois textos acima referidos. Melhor ainda é antes remover a névoa dos preconceitos que contaminam as apreciações ideológicas sobre o liberalismo correntes no nosso meio. Confundir o liberalismo de Vargas Llosa, por exemplo, com o da esmagadora maioria dos nossos políticos, dentro quanto fora do congresso, é apenas concorrer para turvar ainda mais essas águas que somente uma autêntica cultura política poderia adequadamente iluminar. De resto, parece-me que o grande dilema dos melhores liberais que conheço é este: como ser coerente com essa forma de liberalismo no contexto da realidade política e social brasileira?

Por fim, restaria assinalar que Vargas Llosa, dentro da sua tenacidade combativa, é um dos últimos representantes de uma espécie em vias de extinção: a do intelectual público, empenhado na luta das ideias e na defesa das liberdades fundamentais do indivíduo ou ainda dos valores humanos invocados por uma longa tradição humanista que aparenta atravessar um declínio irreversível. Russell Jacoby escreveu há alguns anos um livro, The Last Intellectuals, devotado a essa questão na cena cultural americana. Nele demonstra, em síntese, o processo que deslocou os intelectuais da cena pública (bastaria lembrar nomes como Edmund Wilson, Lionel Trilling, Norman Mailer e Susan Sontag) para o refúgio da academia, onde hoje entretêm teorias complicadas e radicalismo de cátedra para consumo dos próprios pares, como um jogo de castália praticado em nichos impenetráveis à participação mais ampla do povo no reino da cultura letrada. Vargas Llosa, assim como seus parceiros liberais antes mencionados, Octavio Paz e Merquior, constitui a negação dessa realidade que tende a se impor cada vez mais.

 

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