Paulo Gustavo

Marechal Rondon.

O poeta Manuel Bandeira disse muito bem: “A vida de Rondon é um conforto para todo brasileiro que ande descrente de sua terra”. Em tempos de descrença e pequenezas como os que vivemos, a vida de Cândido Mariano da Silva Rondon, o Marechal Rondon, agora narrada na monumental obra do jornalista Larry Rohter, “Rondon, uma biografia”, soa, a um só tempo, como parábola de esperança e como um exemplo épico a mostrar que alguns homens se confundem com a própria nação.

Rondon — prova-o muito bem a sua recém-lançada biografia — foi um homem de uma desconcertante estatura. O trabalho de Rohter, ex-correspondente do “New York Times” no Brasil, nos deixa a impressão de ser, não sem motivo, um romance épico, um vasto painel que cobre meio século de uma vida devotada ao País. Mais que isso, pois o grande feito do biógrafo não é erguer uma narrativa apologética, que facilmente poderia ter descambado para o didatismo superficial que cerca os mitos; o grande feito é trazer com Rondon a história de um país que poderia ter se esgarçado em pura violência “civilizatória” contra os indígenas se não fosse a própria presença do biografado.

O melhor do trabalho de Rohter é que pode ser lido em vários níveis: como a grande aventura exploratória que cartografa, desbrava e registra cientificamente os recursos naturais das expedições conduzidas por Rondon — das quais a mais famosa é a do mapeamento do Rio da Dúvida, na Amazônia, em parceria com Theodore Roosevelt, ex-presidente dos Estados Unidos; como o relato da trajetória de um militar pacifista, impregnado de positivismo e devoção a Auguste Comte; como a vida de um protetor dos índios e da natureza; como o testemunho de um ambientalista pioneiro, para quem teoria e prática integradamente — algo tão raro no Brasil — confluíram num legado duradouro e inestimável.

O livro de Rohter nos grita a palavra que, a respeito de Rondon, no mais das vezes, calamos: estadista. Estadista, sim, ainda que da perspectiva atual sejamos tentados a ver em Rondon um quase ingênuo, apegado à crença positivista na ordem e no progresso. Mas há de reconhecermos que nele o positivismo se somou às suas próprias qualidades psicológicas, morais e cívicas. Como seu compadre Euclides da Cunha, ele pôde, por assim dizer, escrever outros “sertões”. Também ele, como Euclides, era o apóstolo de uma ciência redentora, aí incluída uma sensibilidade antropológica que o tornou não apenas o “pacificador” das mais arredias tribos indígenas, mas o estudioso fraterno dos silvícolas e da floresta, o diplomata que sempre se opôs à força das armas. Daí que o seu reconhecimento, antes de ser chancelado pela burocracia oficial, fosse atestado pelos próprios índios, que o tinham na mais alta conta.

A biografia de Rohter nos mostra Rondon em toda a sua complexidade humana, em todo o seu pioneirismo de cientista e de homem culto a serviço do País. Sua capacidade aglutinadora, suas virtudes de gestor, sua coragem e seu espírito estoico de sacrifício pessoal, de par com uma inteligência lúcida e ponderada, eram suas credenciais junto aos sucessivos governos da Primeira República. Na cidade e sobretudo na mais remota e perigosa selva, Rondon irradiava a obstinação apolínea que terminava por se traduzir em êxito.

Como costuma acontecer, nada também foi fácil para Rondon. A infância pobre, a condição de mestiço, os altivos embates com os poderosos e a burocracia governamental, as ambiguidades de Getúlio Vargas a seu respeito, a mesquinharia dos desafetos e até, na velhice, sua passagem para a vida civil, tudo foi uma prova à sua intrepidez, que, à falta de melhores palavras, podemos chamar de “transcendental” e “patriótica”. Enfim, o americano Larry Rohter, em bem documentado trabalho, nos mostra a nós, brasileiros, a dimensão épica e transnacional de Rondon.

Falecido aos 93 anos, uma lenda viva da República e um ícone incontestável do próprio País, o Marechal Rondon (vale relembrar) foi indicado, mas injustamente preterido pelo Prêmio Nobel. A rigor, foi ele mesmo o grande prêmio que uma nação periférica como o Brasil poderia ter tido.