A questão da grafia e adoção dos nomes próprios estrangeiros é um capítulo curioso da nossa ideologia nacionalista. Já a questão da identidade cultural é por certo o capítulo crucial desta ideologia. Refleti um pouco sobre essas questões que sumariamente assinalo na abertura deste artigo porque me ocorreu lembrar os nomes extravagantes de muitos dos alunos que tive em anos mais recentes. É curioso observar como tendemos cada vez mais a adotar nomes estrangeiros. Mais que isso, mais estrangeiros que os modelos adotados, dobramos consoantes inexistentes nos nomes que nos servem de inspiração. Assim, há agora brasileiros batizados como Petter ou Rychaddson. Como professor, na hora da chamada por pouco não mordi a língua várias vezes para pronunciar ou tentar pronunciar corretamente os nomes extravagantes de alunos brasileiros que, todavia, têm nomes mais que estrangeiros, mais extravagantes que os estrangeiros.
O fenômeno parece acentuar-se (adianto que não procedi a nenhum levantamento empírico, como é de hábito no ofício dos sociólogos) nas classes mais pobres. Quero dizer, quanto mais descemos na composição econômico-social dos alunos, mais encontramos a adoção de nomes estrangeiros saturados de consoantes dobradas e outras extravagâncias gráficas inexistentes nos modelos estrangeiros adotados. Sendo mais preciso, é nos cursos de secretariado e serviço social, pedagogia e turismo que se observa a maior frequência do fenômeno que aqui considero. Neles passei a esbarrar em singularidades como Walleska, Weruska, Nattaly, Wylliam… Lamento agora não haver anotado todos para melhor aproveitá-los neste artigo.
Ora, pensei com minha rota gramática dos nomes próprios brasileiros, aí tem coisa, isto é, isso é sintoma de sentidos submersos no solo da grafia, ou na pele da escrita. Por que tanto agora nos entregamos a esses caprichos que certamente infernizam o trabalho dos funcionários de cartório e os professores, obrigados a morder a língua pronunciando essas consoantes esdrúxulas? O fenômeno, ou pelo menos sua exacerbação, é novo, talvez sintoma do processo de globalização que estreitou as fronteiras entre as nações e os nomes. É, porém, raro encontrar nomes brasileiros entre os americanos e ingleses, franceses e alemães, embora com certeza tenha aumentado assustadoramente a presença de imigrantes legais e ilegais nos EUA, Inglaterra, França e Alemanha. Esta relação desigual sugere a reiteração, neste registro, da nossa dependência cultural, fenômeno típico em países de forte tradição colonial. Noutras palavras, a inflação de nomes estrangeiros na nossa cultura seria apenas mais uma evidência da nossa macaqueação do estranja, como dizia Mário de Andrade com suas expressões peculiares.
Aliás, lembro Mário de Andrade bem a propósito, já que foi provavelmente o maior apóstolo da nacionalização da nossa cultura. Seu pragmatismo militante, tantas vezes confessado e justificado, levou-o a adotar processo inverso ao que acima anotei quando escreveu sua pioneira Pequena História da Música. Visando afirmar os valores nacionais postulados pelo modernismo, nesta obra ele decidiu grafar os nomes de grandes músicos europeus aportuguesando-os. Assim, escreve João Sebastião Bach, Cláudio Debussy, Ricardo Straus etc. Ninguém embarcou na sua canoa furada, que de resto vazou água na própria obra que cito, pois ele foi de uma inconsistência flagrante: ora aportuguesa os nomes, ora preserva a grafia original.
Há pouco escrevia para uma amiga lembrando mais uma vez uma frase primorosa de Tom Jobim que não me canso de citar: “O Brasil não é para principiantes”. Cito-a além da desmedida, reconheço, porque nossa realidade desconcertante está sempre me dando razões de a lembrar e novamente constatar sua precisão. Falamos por ombros e cotovelos o quanto nos orgulhamos da nossa identidade. Os brasileiros mais bairristas, é o caso dos pernambucanos, redobram a dose acrescentando ao nacionalismo provinciano, com perdão do truísmo, as glórias da nossa pernambucanidade, o orgulho de ser pernambucano e nordestino. Convém de resto lembrar que o “orgulho de ser nordestino” é produto publicitário pago e apropriado pela rede Bompreço, que por sua vez vendeu o mote publicitário sem tirar nem pôr ao capital globalizado. Portanto, para bom entendedor meia publicidade já denuncia o comércio inteiro.
Mas lembrava nosso orgulho confesso da nossa identidade cultural que espalhamos aos quatro ventos. Ora, antes de constituir uma evidência de efetiva identidade consolidada, o fato é antes sintoma da persistência de nossa mentalidade colonizada, do servilismo com que, a partir da própria adoção dos nomes próprios, macaqueamos as culturas que são objeto da nossa inveja e ressentimento. Povos ou países cuja identidade está de fato assimilada, integrada às camadas profundas das expressões inconscientes da nacionalidade e da cultura, prescindem desse tipo de comportamento que entre nós se manifesta em tudo através de mecanismos induzidos pelo Estado e toda a rede de instituições cuja função é produzir e sedimentar padrões de comportamento e valor cultural.
Também nossos modos de morar transpiram sintoma de colonialismo mental. Eu por exemplo, o recifense mais colonizado do Brasil, moro num condomínio cujo nome é Castelo de Luxemburgo. O Recife pulula de condomínios identificados não apenas como castelos, mas como castelos que traem nossas fantasias de nobreza de matriz francesa, inglesa, italiana, espanhola… Já pensei em sair pelas ruas do bairro onde moro anotando os nomes tão peculiares e sintomáticos dos condomínios habitados pela classe média. Os intelectuais que odeiam a classe media, também sintomaticamente pertencentes a ela, costumam denunciar do alto dos tribunais nacionalistas e bairristas a mentalidade colonizada da classe media, notadamente a classe média intelectualizada. O galo canta e logo confundem o poleiro. Não é só a classe média que é colonizada. Os porteiros e zeladores do condomínio onde moro falam okei e se chamam Jameson ou Wallace. Quanto a mim, colonizado incurável, já pensei em procurar o cartório do registro civil mais próximo para trocar de nome. Gostaria de me chamar Príncipe William Windsor.
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Fernando: Muito bom o seu artigo, na forma e no conteúdo. Como brasileiro, nordestino e paraibano, morro de vergonha quando me deparo com os nomes próprios a que você se refere.
Mas faço a defesa do “bairrismo” e do “regionalismo”, na linha de Ariano Suassuna e de outros poucos intelectuais. Ainda precisaremos disso, por algum tempo.
Quando vejo, em Estados brasileiros do Sul, referências preconceituosas a nós, e até frases ofensivas nos vidros dos carros, louvo a reação do Grupo JCPM, que adotou o lema “Orgulho de ser Nordestino”.
No meu caso, acrescentaria: também de ser paraibano.
Não tenho respeito por aqueles que renegam, ou mesmo esquecem, ou ainda desvalorizam as suas origens.
Caro Clemente: muito grato pelo comentário. Acho que você notou que, já a partir do título, meu artigo contém alusões irônicas e críticas, inclusive à ideologia nacionalista que tanto celebramos. O tom irônico tem a ver com o fato de que meu artigo apenas toca a superfície do fenômeno complexo que é a adoção de nomes estrangeiros na nossa identidade nominal e cultural. Por isso, por dizer bem menos do que sei e poderia dizer, confio na inteligência do leitor que lê além do texto. Um abraço, Clemente.
Fernando,
É sempre um prazer lê-lo e dessa vez não foi diferente. Ainda na minha infância, comecei a observar o fenômeno sob forma de homenagens: Kennedy, Lincoln, Nikita, Lênine, Kildare, Orson. Depois conheci Stallone, o filho da diarista. Na maioria dos países da América Latina – um pouco menos no Chile e na Argentina, mas em Cuba também – são comuns: Elvis, Jotaerre, Greicekelly, Marlon, Maike Taison, Maikel Jekson, Rollifiud, Maikel Jordan. Tem legião de Bekenbauer e um notório Rosenbrink – que jogou profissionalmente no Santa Cruz, acho eu, o que prova que o nome pode ajudar na vocação, já que o pai o batizara inspirado no grande craque holandês.
Afora essa galera dos esportes e do “show business”, começaram a se generalizar de uns vinte anos para cá os nomes indígenas – tupis, guaranis, maias, aztecas e incaicos. Daí Manko, Cauã, Cauê. Como se isso já não diversificasse o bastante a pauta de Antonios, Pedros, Fernandos e Marias, entraram em ação os numerologistas. E chegaram quase que com força de lei. Ai de quem chame certos cantores pela nomenclatura antiga como Jorge Ben e Baby Consuelo – corro risco em citá-los aqui assim. Foram os gurus que atinaram para o filão que residia em usar letras de maior impacto – duplicando-as ou revisando-lhes a fonética.
Temos ainda uma certa tradição viking dos que trazem “son” no nome – Kleberson, Sanderson e Anderson. Lá atrás ficaram as combinações do nome do pai e da mãe – Brisamar, fruto do amor de Brigite com Lindomar, mas ainda deve ter bastante. Melhor ficar por aqui antes de sermos chamados de elitistas. Estranho mesmo eu acho essa mania lusitana de traduzir à la Mario de Andrade. Chopin, por exemplo, vira Frederico Franciso Chopin. Saindo do tema, mas de certa forma ficando nele, não vou perder a deixa. Hoje à tarde, eu passeava por uma ruela de Chaves, Portugal, quando li numa placa “O talho de Madalena”. O que será?
Imagina-se muita coisa, não é? Menos que ali vá se encontrar um simples açougue. Atrás do balcão, a roliça D. Madalena vende rojões, alheiras, bucho, farinheiras, paios, enchidos, fiambres, pernis, estofados e salpicões. Já grelos, eu como todo dia. São bom acompanhamento para o bacalhau assado. Justiça seja feita, Portugal é de uma fidelidade acachapante a suas tradições. Antonio, Manuel, José, Francisco e Sebastião parecem permear 60% dos nomes masculinos. E Fátima, uns dez por cento das 50% de Marias. Em tempo: o nome de família mais popular do mundo é Cheng, creio eu. Fernando, desculpe comentário tão longo. É a solidão abissal, o silêncio ensurdecedor. Uma coisa vai puxando a outra.
Grande abraço,
FD
Meu caro Fernando: Muito grato pela leitura e o comentário. Este, aliás, vale quase como um outro artigo desdobrando o meu, tal a riqueza de dados que você adiciona como que emendando associação de ideias. É de fato impressionante o que você combina de memória e percepção inesgotável da realidade sensível. Você parece viajar com as antenas sensíveis de um etnógrafo cruzando fronteiras e costumes. A riqueza e variedade do seu senso de observação é de causar inveja. Posso apenas acrescentar que seu comentário preenche algumas das lacunas empíricas do meu artigo. Um abraço e muito grato, Fernando.
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