ATO I
Num quarto aconchegante, mais residencial do que de hotel, Mara dorme de pijama, com a cabeça enterrada entre dois travesseiros enormes. Mal se vê seu rosto, apenas as mechas do cabelo castanho. Os pés estão calçados em meias de listras. À mesa próxima da janela, Renato – homem de meia-idade, grisalho e concentrado – escreve à meia-luz e, de vez em quando, faz uma pausa para reler uma página com ar de descontentamento. Ele veste calça de lã preta e blazer de alpaca verde-musgo. Pelo vidro fosco, se vê a neve que cai lá fora. A certa altura, ele se serve de chá, evitando fazer barulho, e, vendo a esposa parcialmente descoberta, vai até ela e a cobre com uma manta felpuda até os ombros. Ela muda de posição, parece sorrir e, ainda sonolenta, desperta com ar vagamente ansioso, quando ele já voltara ao computador.
Mara
Bom dia. Você é sempre tão carinhoso comigo, sabia? Nunca imaginei que existisse alguém assim. Se te disser com que eu estava sonhando, você não vai acreditar. Quer saber?
Renato
Se eu quero, meu amor? Você ainda pergunta? Se não falarmos dos sonhos, o que mais nos restará a essa altura?
Mara
Pois bem, estávamos no vilarejo de nossa infância e era dia do padroeiro. Os atiradores de bacamarte miravam a base da fogueira e você acompanhava tudo de perto, de braços cruzados, na pracinha do hotel – onde se concentravam os turistas que vinham da capital. Até os cavalos estavam assustados com os estampidos e relinchavam nas baias que davam para o Seminário. É incrível como os ouvi com nitidez. Então começou a nevar, nevar muito, e todo mundo foi se proteger na sala de jogos. Menos você que ficou lá fora, vendo o fogo crepitar. Parecia tão triste e só. Aliás, o que é que você ainda tanto escreve, meu amor? E, com o perdão pela intromissão indevida, para quem?
Renato
Realmente, dadas as circunstâncias, é uma boa pergunta. Você sempre faz poucas, mas boas. Sobre o que, não é mesmo? Pois bem, quando disser, você também custará a acreditar. Estava justamente registrando um sonho. Ele também era ambientado na aldeia. Só que, em vez da festa do santo, era só mais uma noite estrelada. Mas adivinha quem estava lá comigo? Tomi. Ele olhava o céu, queria ver o Cruzeiro do Sul, desafiando minha astronomia rudimentar. Igual ao que fazíamos madrugada dessas aqui, em Saariselkä, antes de tudo acontecer, caçando os clarões da aurora boreal. Tomi usava o mesmo chapéu de raposa de nossa chegada ao aeroporto de Ivalo. Coincidência, não é? E imaginar que estamos aqui nessas lonjuras a sonhar com nosso vilarejo.
Mara
Mas aí é que está, Renato. É justamente pela circunstância, e não apesar dela. A que mais podemos nos apegar senão à infância? O que mais pode ser importante senão termos um ao outro? Essa sincronicidade não me espanta. Mal comparando, prisioneiras reclusas menstruam nos mesmos dias ao cabo de alguns meses – antes de parar completamente. Sim, a aldeia está dentro de nós. Acho também que tem a ver com a conversa do último jantar dos tempos de paz. Lembra que você disse que os eucaliptos do Grande Parque de lá vieram da Suécia, aqui tão pertinho? Pensei muito nisso também. Enfim, tudo se associa. Sabia que muitos desses eucaliptos ainda estão vivos?
Renato
Da última vez que estive lá, eles ainda perfumavam o ar da parte alta.
Mara
Já os tiros que ouvi, eu associo aos fogos de Tomi e Riikka. Como eles são gente boa. Naquela farra da sauna da entrada do ano, com as amigas dela, mal imaginávamos o que estava por acontecer. Aliás, você percebeu o garotinho ontem? Decididamente, ele é hiperativo. Ele não larga o tablet nem para comer. E desconfio que espiava os poucos sites noticiosos que ainda estão no ar. Daí aquele olhar raivoso e impaciente.
Renato
Isso porque é um menininho finlandês. Eles são páreo para os pequenos coreanos em educação formal. Mas os pais aqui deixam a disciplina correr um pouco solta. Talvez também porque estejamos vivendo dias excepcionais. Além do mais, tem o kaamos ártico. Essa melancolia, o apagão do disco solar, caminhos iluminados artificialmente, alcateias de huskies agressivos. Criança, então, pira. E aqui eles só extravasam quando bêbados. Mas, ora, criança não bebe. E depois do que aconteceu, todo mundo está recolhido. As pessoas estão com medo de dizer não umas às outras porque não sabem se vão ter a chance de dizer sim amanhã. Vamos ter mundo amanhã? Ou já chegou o Apocalipse? Felizmente o remédio me chapou, mesmo que por poucas horas. Mas invejo teu sono.
Mara
Como você faz alegorias bonitas com as palavras, meu bem. Meu sono? É o sono dos que ainda não perderam a esperança. É meu lado prático. Pergunto: ficar de vigília vai resolver? Mesmo assim, quando você foi dormir, fiquei assistindo televisão. Àquela altura, tinham já fechado Heathrow e Barajas. Depois, veio o resto. Berlim estava sob toque de recolher; Varsóvia foi ocupada; Tallinn, destruída, e a torre de controle do aeroporto Charles de Gaulle só autorizava voos de ajuda humanitária. O que mais me espantou é que milhões de russos estão fugindo para a Sibéria em pleno inverno. Para o Baikal, parece. Tomi veio nos dizer que talvez viajemos também nos próximos dias mais para o norte. O Instituto está calculando a trajetória da radioatividade. Trondheim, na Noruega, pode ser mais segura e lá ele tem amigos. Ou mesmo Murmansk, na Rússia. Pelo jeito, acabaremos numa banquisa de gelo.
Renato
Essa é boa. Mas, infelizmente, piorou muito hora após hora, meu amor. Ninguém sabe, por exemplo, o paradeiro do primeiro escalão americano. Dizem que pode estar num bunker do Meio-Oeste. Em Washington, Tóquio e Jerusalém, as pessoas só saem de casa com máscara anti-gás. Sim, eu acho também que o menininho está percebendo tudo. Vá ver que é uma pedagogia nórdica, a de não esconder nada das crianças, de jogar aberto. Quanto a mim, estou estudando umas rotas alternativas. Mas meu conhecimento de mundo agora vale zero. Pensei na África do Sul, de avião, para de lá voltarmos para casa e aguardamos o fim com os nossos. Mas os sites de voo estão saturados, quase não consigo conexão e ninguém marca passagem. Os hackers estão ocupados como nunca. A Cidade do Cabo seria das poucas áreas seguras, se não fossemos abatidos sobre o Saara ou o Sahel. O piloto teria que achar um corredor ao largo da Eritreia, para então sobrevoar Uganda. Depois tudo seria mais fácil.
Mara
Uma saída deve existir, meu amor. O que me preocupa é que, de onde menos se espera, surge um míssil terra-ar. Até da Córsega lançaram um, imagine. Sei que criatividade aqui não falta, bote ela para funcionar. Milhares de aviões estão no ar agora. O risco pode valer a pena. Se eu ainda soubesse das pessoas de nossas famílias. Para agravar a culpa, talvez estejamos até melhor aqui do que eles lá, naquela pontinha tão estratégica do planeta. Descobriram uma célula de terror até nas instalações abandonadas de um velho porto baleeiro. Eles tinham gente infiltrada em navios fundeados em todos os portos de nossa costa. Os celulares estão mudos, dizem que os satélites só estão usando a banda militar e meteorológica. Istambul sumiu do mapa; a represa de Assuã pode voar pelos ares a qualquer momento. Suez estava por fechar porque dois navios já tinham explodido em colisão com minas. Um era petroleiro, foi uma bagaceira.
Renato
Agora já foram a pique mais de dez navios, minha linda. O Canal está bloqueado, intransitável. Itaipu também corre perigo. É a ameaça da tríplice fronteira se materializando. Só aviões militares estão no ar. E algumas fortalezas voadoras presidenciais que são reabastecidas em voo e não tocam a Terra por até três dias. O presidente vizinho estabeleceu um governo provisório perto da imensa geleira austral e ofereceu refúgio operacional para todos os dirigentes e familiares. O Índio também. Mas quem é que quer ficar naquelas alturas? Dizem que ele é o único que está gostando de tudo. Afirma que é uma velha profecia das montanhas a se cumprir. Que o castigo de Pachamama vai reparar o sangue inocente dos ancestrais injustiçados. E pensar que um mês atrás nossas pautas eram tão inocentes, não é? Quer saber? Esse negrume mexe com nosso metabolismo. Às vezes, acho que vou enlouquecer. Outras tantas, eu acho que nunca fui tão feliz. Você, não?
Mara
Não, não era dessa forma que eu queria que o mundo fosse só nosso. Em meus devaneios, tudo era mais bonito. Como em seu sonho – você e Tomi olhando o céu à procura do Cruzeiro do Sul. E não buscando mísseis. Venha cá deitar um pouquinho comigo, venha. Espero que não tenha sido o último sonho que você registrou nesse teclado desdentado. Vamos fazer como aqueles velhinhos do Titanic que ficaram abraçados na cabine enquanto a água subia, subia, subia. Só torço para que meus filhos estejam serenos numa hora dessas. E que mandem um sinalzinho de vida de onde estiverem. Para mim, o mundo poderia acabar, contanto que eles estivessem bem. Não, Renato, não se irrite. Seria uma pena, mas é tudo que posso desejar agora. O que não admito é viver tudo isso longe das pessoas queridas. Das tantas pessoas amadas. Quando os aviões derrubaram as Torres, pelo menos estávamos todos na mesma cama – eu e eles. Será que chegamos ao fim?
ATO II
No palco, uma cozinha russa. Uma pequena mesa com toalha xadrez, um samovar no fundo, quase colado à parede, e um sofá de dois lugares. É uma mobília rústica, dos anos 70. Perto da lareira, toras de madeira. Na televisão muda, imagens de paradas militares e aviões em operação. Mara usa um sobretudo cinza, botas acolchoadas de camponesa e espera Renato no meio da sala com as mãos na cintura, num gesto gracioso, como se fosse uma bailarina. O cabelo está bem grisalho. Renato chega carregando sacolas com mantimentos e está muito mais calvo do que antes. Também encapotado, vai tirando a indumentária mais pesada, dá-lhe um beijo, e se ouvem os latidos de um cão lá fora. Um vaso com três rosas artificiais desponta na mesa de canto. Eles ficam abraçados para se aquecer e só então ele fala.
Renato
Zdravtsovitsie“. Vamos começar pela notícia ruim, Marushka? Svetlana Borisova disse que as pegadas em volta da casa eram mesmo as de uma família de ursos – dois dos quais, grandes. No momento, a municipalidade está sem contingente de apoio para afugentá-los ou mesmo matá-los. A boa nova é que Jussin está chegando no fim de semana com Tomi. Quando eu disse que a caça estava liberada, ele se animou e falou que amigos são para essas horas. Munição é o que não vai faltar. Recomendaram na cidade que não deixemos lixo orgânico lá fora – mesmo congelado – e que o cachorro fique na casinha com o aquecedor ligado no mínimo. Ele precisa ficar em alerta o máximo de tempo possível. Querendo ou não, ele perturba os planos dos ursos que gostam de chegar devagarzinho. Lindos, já sei, mas traiçoeiros.
Mara
Nem foto eu tenho mais como tirar. Coitado de Maxim, vai ficar afônico de tanto latir. Por dever de fidelidade, vai morrer. Agora é minha vez de te contar uma novidade. Frederico conseguiu telefonar de novo, depois de meses de silêncio. Tólia Vederkinov chegou aqui correndo com o aparelho. Eu até tinha esquecido que tinha dado o número dele para os nossos. Fiquei tão feliz. Consegui gaguejar em russo e em português. Fred disse que com a chegada do verão na Europa, a radioatividade está mais dispersa. Tudo dando certo, nós poderíamos voltar com Jussin para Ivalo. De lá, daríamos um jeito de chegar a Wiesbaden até maio. Talvez via Rostock, pelo Báltico. Lá pegaríamos um avião da ONU que sai todo dia para Dakar. Nossos nomes já estão na lista. Com a proibição de sobrevoo do Atlântico, poderíamos ver Fred, Ágata e Teresa na África. Eles viriam de navio fretado com mil famílias. E então, adeus Rússia. Dasvidanya. Uma notícia ruim: entre Índia e Paquistão, se comenta que meio-bilhão de pessoas teriam morrido.
Renato
Meio-bilhão? Mais de duas vezes a população brasileira? Desculpe, mas seu filho Frederico nunca foi muito bom de zeros. Marushka, ainda está para se inventar bombas atômicas que possam fazer vítimas dessa ordem de grandeza. Uma coisa é dizimar a vida entre Bagdá e Haifa. Ou mesmo em Los Angeles ou Teerã, o que já foi uma enormidade. Outra bem diferente é se chegar a uma magnitude dessas. A vida no planeta já estaria extinta. O que eu soube, indica o contrário. Svetlana Borisova disse que Moscou já começa a ser repovoada por alguns valentes. Já desalojaram os chechenos do Kremlin, pelo menos. Não sei, mas me sinto seguro aqui, mesmo cercado por esses ursos malditos. Nunca imaginei que fosse odiá-los tanto. Acho que Jussin nos dará uma grande mão. Ele diz que os bichos são inteligentes, sabem quando o terreno ficou hostil e somem por meses.
Mara
Fred falou que as mortes tiveram mais a ver com as super bactérias do que com as explosões. A pestilência tornou o ar irrespirável. Não há remédio. Todos os rios da região estão imprestáveis – inclusive o delta do Ganges. Fred disse que o novo sonho dourado do mundo não é mais a Nova Zelândia, a Patagônia, o Congo ou mesmo aqui. Disse que a Amazônia tem recebido grandes contingentes. Abriram cinco aeroportos novos na área. Quem consegue superar os controles americanos – provando que não tem doença nem afiliação sequer remota à Seita Sinistra -, pode tentar se estabelecer num igarapé. Os chineses tentaram fazer a mesma coisa no Amur, mas não dá para sair à rua sem máscara. Dizem que estão ocupando a tundra. Outros foram para a Indonésia que eles próprios desmataram tanto. E nunca mais me chame de Marushka, já pedi uma vez, pajalousta.
Renato
Desculpe, amor, entendo que você queira ver os seus entes queridos. Mas, e depois? Aqui, nessa imensidão branca, bem ou mal, estamos recebendo os remédios e ao abrigo dos piores ventos. Assim, pergunto: o que faríamos depois de Dakar? Voltar para cá seria impossível. Em que lugar do mundo nós nos esconderíamos? E eles – Fred, Teca e Ágata – pretendem ficar na África ou vão se expor a novos riscos? Será que vão atravessar de volta um mar conflagrado onde tudo que se mexe é alvo – até baleia? Não seria melhor que eles também viessem para cá? Eu conseguiria que Svetlana Borisova nos liberasse mais alguns vistos de residência. Pelo menos seríamos mais numerosos para lutar contra os ursos. Depois, quanto tempo nos resta de vida? Apesar dos mosquitos do verão, me sinto protegido pela taiga. Sentiria falta do permafrost, do silêncio, do uivo dos lobos.
Mara
E de mim, você sentiria falta? Ou um porre com Svetlana Borisova resolveria tudo? Você sabe o que está por trás disso, Renato? É seu velho ódio ao mundo. Você, no fundo, nunca foi tão feliz quanto nesses malditos três anos em que estamos entocados aqui – desde que tudo começou. Muitas vezes, eu tenho a sensação de que você sabia que tudo isso iria acontecer e só comprou as passagens de vinda. Quantas chances nós já não perdemos de pelo menos tentar sair daqui? Parece que você se sente prisioneiro da tal Borisova, sei lá. Eu não posso terminar meus dias desse jeito. Até amor tem limite. Por mais que o mundo tenha virado uma praça de guerra, eu quero estar pelo menos ao lado dos meus. Morrer com eles. Não queria ter que decidir entre eles e você. Mas você não está me dando opção. Você se dá conta disso? Escute os latidos desesperados de Maxim. Os ursos vão comê-lo vivo.
ATO III
Mara e Renato estão de jeans azuis e camiseta de algodão branca. Ambos estão descalços e ocupam o meio da ribalta. A cena central é completamente nua e dois spots os iluminam indiretamente. Empilhados, no fundo do cenário, de forma desorganizada, a cama, o sofá, a tela, a janela, o samovar, as roupas de frio e tudo o que tinha composto o cenário dos dois primeiros atos. Os dois parecem cansados, mas ficam de pé, ainda excitados, ignorando os dois bancos altos que a produção lhes colocou à disposição. Em cada um dos lados das coxias, pontifica um homem e uma mulher. Ele tem a cabeça toda branca e veste jeans desbotados e camiseta preta. Do outro lado, uma mulher de uns 80 anos, mas de bela postura, cabelo prata, roupa branca e charmosos óculos de armação coral. A voz é um pouco trêmula e trai leve sotaque.
Joaquim
O que dizer? O que dizer, minha cara Hana? O que dizer disso tudo, meus caros atores e distinta platéia? Para começar, parabéns (ele puxa aplausos demorados). São parabéns à minha maneira: discretos, contidos, mas sinceros e intensos de qualquer forma. E por que o digo? Primeiro porque Mara e Renato me convenceram. Segundo, pela bravura de encarar essas roupas de frio em pleno verão carioca. Por um momento, juro que ouvi lobos. E, até nós mesmos, ficamos com frio aqui nos nossos cantinhos, eu cá e Hana lá. De qualquer forma, eu imagino: o maluquinho que escreveu esse texto deve estar rindo onde estiver. Digamos que se trata de um Bergman jogando fora da posição. E com tintas de catastrofismo geracional. Mas vamos lá. Quero ouvi-los agora. Sugiro que comecemos por Hana, nossa preparadora de elenco. Bitte schön!
Hana
Eu gostei, sim, mas ainda não adorei. O que mais me incomodou foi que a Mara manteve até o final o mesmo tom. Meu amor para lá, meu amor para cá. Tudo bem, é do texto. Mas eu esperava um pouco mais de tônus cênico, pelo menos no final. Quando ela diz, por exemplo: “Por mais que o mundo tenha virado uma praça de guerra, eu quero estar pelo menos ao lado dos meus. Morrer com eles. Não queria ter que decidir entre eles e você“. Lieber Gott, quando ela diz isso, repito, não tem como manter o mesmo tom. Ela tem que fazer uma pausa longa. E deixar claro que é o fim da linha. Ou estou sendo muito alemã? O autor, quando se referiu ao ódio de Renato ao mundo, certamente esperava de Mara mais solenidade. Indignação, até. No mínimo, um tom reflexivo, que trouxesse o peso de uma constatação sofrida e tardia. Ele é um egoísta e ela se resignou a isso por muito tempo. Sim, a conclusão custou, mas chegou. O dramaturgo sabia do que falava, pois foi abandonado pelo pai que viveu como ermitão no wadi Daliyeh, no deserto.
Joaquim
Concordo com a primeira parte, Hana. Até porque ninguém na plateia é obrigado a conhecer a história do autor. Ela tem, portanto, que nos chegar por outras vias. Então, que a narrativa se adense, ganhe ritmo, pulsão e pegada. Estudaremos recursos. Já que não temos em cena as figuras do tal Tomi, de Riikka, de Jussin, do garoto, da Svetlana, do Vederkinov, sequer do cachorro Maxim – eu queria essas abstrações mais tangíveis. O pano de fundo e o enredo me parecem adequados. Lapônia, fuga para a Rússia, mundo conflagrado, radiação, o apego a uma espécie de prisão imensa, o medo do passado, a posse de Renato e a passividade de Mara. Mas também quero um Renato mais empenhado, mais comprometido. Mais louco, em suma. E ainda quero uma revisão factual disso, cacete. Como é que se mata meio-bilhão de pessoas desse jeito?
Mara
Isso é o que menos me preocupa. Índia e Paquistão são potências nucleares. Se um conflito multilateral estoura, sem que ninguém saiba sequer o que o desencadeou em tempos de ódios difusos, por que não lá – onde uma guerra surda está por acontecer há anos e onde tem mais gente do que formiga? O que não sei é se eu topo fazer o papel, a essa altura. Coisa de momento, entende? Nessa balada, vou terminar deprimida. E, convenhamos, quem garante que ganhemos pelo menos o apreço da bilheteria? Concordo com a Hana, precisaria estar mais presente no papel, ficar mais indignada com esse baita maníaco que, pelo jeito, pode estar refém da tal Svetlana. Enfim, não é histeria, mas isso não está me empolgando. Preferia uma boa comédia de costumes. Molière, por exemplo. Preciso escutar boas risadas e não ver gente se encolhendo de medo.
Renato
Pois eu já acho o contrário. Teatro é denúncia, e não só entretenimento. Sem estrelismos de última hora, por favor. Se o autor carregou nas tintas do terror, paciência. O que você queria de um jovem de Haifa, chamado Moishe Morgenstern? E que cresceu condicionado a ser quase fóbico – desculpe, Hana -, ouvindo horrores sobre o alcance das bombas iranianas? E que, ademais, faleceu cedo, ainda mais com a pecha de desertor num país implacável para com eles? Por mim, só o fato de ele ter ambientado tudo isso num lugar onde nunca botou os pés, antecipando até emoções e momentos de duas vidas adultas complexas, bem, isso só pode somar ao interesse do público. Acho que a questão está na gente. Está faltando tônus de palco para mostrar que estamos mais próximos do abismo do que de identificar o Cruzeiro do Sul no firmamento.
Joaquim
Vamos parar por hoje, gente. Estamos encavalados entre a realidade e a ficção e temos os sentidos embotados pelo terror. Teatro pede ênfase, mas também empatia. Sem concessões ao fácil, de preferência. Entendemos bem a fala de Mara, mas acho que a comédia pode esperar. Quantos aqui em nossa audiência não se identificaram com esse casal que, de repente, se viu colhido numa arapuca? Quem duvida que o mundo esteja de fato revolto? Quantos jovens como o pequeno finlandês camuflam uma descrença total no amanhã e enxergam nas armas uma solução como outra qualquer? Vamos em frente. Como nunca na vida, a natureza virou prisão e todos nós temos uma Svetlana Borisova em nosso encalço. Um Frederico acenando ao longe. E, na calada da noite, as pegadas de ursos do Ártico a espreitar o que sobrará do jantar. Além de um Renato misantropo, infelizmente aos milhões.
Hana
Trazer a peça de meu Moishele a esse palco para mim é muito especial. Parte dessa história, fui eu quem lhe contou. Ele era meu neto mais velho. E foi em homenagem à avó – eu aqui – que ele puxou as paisagens e ambiance de uma juventude despedaçada – a minha. Mas que depois se reconstituiu. Tanto é que estou aqui, quase nonagenária. Essa história data de quando eu vaguei durante trinta anos com o avô dele em campos tão brancos que chegavam a cegar. E quando nós vivíamos como reféns da natureza, dos camponeses e do imenso horror de meu marido ao ser humano – depois de coisas que viu, mas que nunca ousou contar. Sequer a mim. Ver essa peça montada, nesse palco tropical, resgata um sonho que Moishele teve durante algum tempo. Até que outros conflitos fizeram com que ele puxasse, de moto próprio, o que está para cair entre nós e vocês: as cortinas da ribalta. (Pano lento).
***
João,
Ilustração magnífica, rapaz. Muito obrigado. Dessa vez, cheguei a pensar que sucumbiríamos à imagem de dois enormes ursos pardos – até por falta de alternativa iconográfica.
Mas como a vida agracia quem se esforça para sair do convencional, eis que acertaste na mosca. Foto extraordinária, forte e febril. Um estímulo e tanto para que alguns ousem percorrer os três atos.
Se eu ganhar um leitor novo, o deverei a você.
Abraço,
FD
Custei a passar do começo: muito russo e muito ruço p’ra mim. E como é que gente que tem “tablet” fala como se fosse escrito? Eu devia ficar quieta, não comentar, pois de qualquer modo não gosto de “science fiction” nem de filme de terror. Mas é uma peça que pode ser sucesso, sim. Claro que não sou critério, nem sou crítico literário, sequer sou fã de crítica literária. Eu vi outra peça que aponta para questões complicadas como o terrorismo, “Incêndios”, no teatro FAAP, não gostei , um caos, mas a peça foi um imenso sucesso de bilheteria em S.Paulo. Essa peça de Fernando Dourado tem um achado, que é a crítica da peça pelos próprios personagens como parte da própria peça, o último ato. Isso eu gostei, achei divertido. E concordo com Fernando Dourado sobre a ilustração: de russos já tinham cara os personagens, e nem acho urso um bicho bonito. Mas não li por causa da ilustração, nem sou leitor novo, foi mesmo por causa do autor.
Querida Helga
Fico contente em vê-la aqui. Mais ainda por você ter apreciado a ousadia do Ato III – um passo audacioso e que poderia desmontar o mérito discreto dos dois primeiros. Reconheço que nem mesmo eu saberia dizer o que me levou a enveredar por esse caminho. Depois de testar algumas formas – crônica, conto curto, ensaio, conto longo, perfis, memorialismo, entrevista, reportagem e até obituário -, achei que devia a Será alguma inovação. Não me arrependo. Só acho que deveria ter publicado numa época em que os leitores têm mais tempo para a leitura. O final de dezembro é meio ingrato. Se não consegui até agora um leitor novo, pelo menos mantive minha favorita. Obrigado.
Não é só período natalino, é natalino em ano de crise, e boa parte do público da Será? está mobilizado pelo impasse político: o texto do Sergio C. Buarque sobre ritos do impeachment, postado hoje, já tem, no mesmo dia, mais de 1000 curtidas e mais de 30 comentários!
Helga,
Relendo tua crítica, me ocorreu uma coisa que parece óbvia, mas que sequer tinha me passado pela cabeça. Quando escrevi essa peça curta, não me passou pela cabeça encená-la ou sequer oferecê-la a um dramaturgo digno do nome. Acho que sou muito pouco comercial, no fundo. Mas te agradeço a lembrança. Por que não? Com algumas modificações – especialmente no ritmo dos diálogos – poderíamos chegar a bom porto. Obrigado de novo.
De tudo que li de Fernando em Será até hoje, essa peça foi a que mais me tocou. Posso ter razões bem pessoais para a escolha, mas o que vem ao caso foi o prazer estético e a reviravolta do final. Nunca tinha lido uma peça escrita. Agora pretendo conhecer melhor esse filão.
Com uma leitora desse gabarito, o que mais posso eu querer? Salvo, talvez, que outros se animem a reatar com o texto teatral. A tal reviravolta parece que foi mesmo o ponto alto e que valeu a pena assumir riscos.
Querido Primo
Não surpreendi-me em detectar mais uma façanha extraordinária em você.Beijão querido gênio.
Ô Zé, você me sensibiliza com sua audiência.
Nunca os modestos ursos árticos desse enredo se sentiram tão agraciados.
Beijo,
FD
Meu amigo, sabe que sou econõmico na manifestação dos elogios e tento ser preciso em alguma contribuição supondo que sera encenada e, mesmo com todo incremento que os atores e a interpretação possa trazer, há uma monotonia gerada pela similitude de estrutura e extensão das falas __ muito extensas; mesmo quando consideramos o Ato III que, apesar de criar um movimento reflexivo sobre os Atos I e II, também é constituído de falas extensas.
Do ponto de vista da platéia, mesmo que Ato I e II sejam uma experiência teatral a ser criticada no Ato III, eles constituem mais de 50% do tempo da peça. Talves a surpresa da reviravolta do Ato III na forma ainda de falas extensas como estão, não seja suficiente para esvair minha sensação de monotonia desenvolvida no I e II.
Talves a coisa toda se resolva na forma que o diretor imprimirá á encenação e meus comentários sejam exagerados. Bem, feliz do diretor que tiver esse texto em mãos !
abraço,
Lázaro
Muito divertido que tenhamos voltado a falar desse texto ontem, meu amigo. Juro que o tinha esquecido por completo – de tão sofrível que o achei à época. Mas agora vi tudo com outros olhos.
Grande abraço,
Fernando
Lázaro,
Muito pertinentes suas colocações e fico grato porque percebo que você leu o texto todo e, ademais, sabe do que está falando. Sem querer me eximir do deslize de carregar em demasia nas falas, ressalvo que precisei compactá-las de forma a evitar que os diálogos picados castigassem a diagramação e tornassem a peça muito maior do que esse tipo de revista comporta – e olha que sou dos que abusam.
Seu comentário, contudo, me estimula a retrabalhá-la procedendo à fragmentação das falas, logo dando dinâmica nova ao enredo. Quem sabe um dia ela não sobe ao palco? Vejo que você captou muito bem o truque do ato III. Certo é, contudo, que nas latitudes árticas não se fala com a vivacidade comum aos becos napolitanos. Algo do tom monocórdio tem portanto que ser preservado.
Muito obrigado.
Abraço fraterno,
FD