João Rego (*)
Recife, 30 de dezembro de 2015.
O ano que passou submeteu a nação a um bombardeio no campo da política, causado pelas operações da Justiça e Polícia Federal, com um impacto negativo direto na economia. Foi um ano em que as grandes empreiteiras— aquelas que vêm construindo, há décadas, as obras de infraestrutura no país – sentiram, pela primeira vez, o peso da justiça.
O nosso dia-a-dia, com o foco inevitável dos meios de comunicação, suscitou no cidadão um forte sentimento de perplexidade, raiva, descrença e orfandade.
Mas será que isto é necessariamente ruim?
Termos as entranhas da corrupção expostas em seu complexo labirinto de interesses escusos é doloroso, mas não necessariamente ruim para a nação. Doloroso porque na política, como eleitores, somos inevitavelmente capturados pelos discursos dos “pais” que vão nos salvar e conduzir o país para o futuro. Isso é ainda mais verdadeiro para as camadas da população mais sofridas e desprovidas de recursos para compreender e atuar na realidade em que estão imersas. O populismo deita e goza com este terreno fértil constituído pela miséria humana.
O poder político sofreu, em 2015, importantes fraturas estruturais que, espero, elevem nosso país a uma categoria mais consolidada de democracia.
A primeira e promissora fratura atinge o cerne do setor produtivo, historicamente ligado umbilicalmente ao setor público – muitas vezes de forma promíscua. Nunca houve em nossa história prisões de empresários e políticos importantes como os que a Operação Lava Jato atingiu. O Estado deve ter o poder de regular o ambiente por onde vai fluir a atividade econômica, é assim em todo canto, mas daí inverter-se a equação, e termos as grandes empresas, nacionais e multinacionais, usando o Estado para, sorrateiramente, servir aos seus interesses é um grande perigo e uma forte ameaça à democracia. Corroeu-se, por dentro, com a cumplicidade de importantes líderes políticos de vários partidos, todos eles investigados pela justiça.
A empresa vai perceber que competitividade e lucratividade vai ter que ser conquistada no mercado — inclusive enfrentando os enormes desafios de ser inovadora e fazer parte da cadeia global de produção. Imiscuir-se de forma promíscua com o setor público vai ficar cada vez mais caro e arriscado.
Outra fratura é na percepção do eleitor de que não estamos elegendo “salvadores da pátria”, e quão ineficiente é não se dar ao trabalho de colocar racionalidade, substituindo a velha, improdutiva e fácil passionalidade para orientar o ato de votar.
Em 2015 o país tem, portanto, um ponto de inflexão na sua recente história democrática. São fraturas que destroem formas arcaicas de dominação política e forjam novas estruturas para o país reencontrar seu futuro.
Sei que em regiões mais atrasadas – não falo de geografia, me refiro à mente – estes mecanismos irão se repetir. Minha bisavó, lá do interior, já dizia: “Quem faz um cesto, faz um cento, assim tenha cipó e tempo ”, uma genial versão para o mecanismo da repetição no psiquismo humano. Entretanto, uma parte esclarecida da população vai ser obrigada a substituir este sentimento de perplexidade, raiva e orfandade por maturidade política – condição essencial para sociedade civil exercer uma prática autônoma de cidadania. É para estes que escrevo.
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(*) João Rego é engenheiro, cientista político e consultor. É editor da Revista Será?
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¹ Título de um poema de Thiago de Melo (https://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello)
Qual não foi meu susto ao ver o título escolhido por João Rego para seu artigo. Muito apropriado. (E a ilustração maravilhosa!) Mas que voltas o mundo dá! Surpresa, susto, tristeza. Faz Escuro mas Eu Canto é o título de um livro de Thiago de Mello publicado pela primeira vez em 1965, pela Civilização Brasileira. O escuro era o da noite, estava no fim do poema “Madrugada camponesa “:
Madrugada camponesa
Faz escuro (já nem tanto),
vale a pena trabalhar
Faz escuro mas eu canto
porque a manhã vai chegar.” (Amazonas1962, Santiago 1963)
Deu o nome ao livro de 1965 por causa dos tempos de então, como se revela em trecho de outro poema que ali está, esse já de 1964:
“O tempo é de cuidados, companheiro,
É tempo sobretudo de vigília.
O inimigo está solto e se disfarça.
mas como usa botinas fica fácil
distinguir-lhe o tacão grosso e lustroso
que pisa as forças claras da verdade
e esmaga os verdes que dão vida ao chão.”
Encontrei Thiago de Mello muitas vezes na Civilização Brasileira, em 1965/66. Demitida do ISEB, eu conseguia com Ênio Silveira alguma tradução que me rendia algum trocado. Li de ponta a ponta Faz Escuro mas Eu Canto , bem como o livro de 1966, também publicado por Ênio Silveira, A Canção do Amor Armado. Pois Thiago publicou então sua primeira antologia, e pediu que eu selecionasse poemas, pois publicaria os preferidos por seus leitores (como faria de novo em 2001, Poemas Preferidos pelo Autor e seus Leitores, edição da Saraiva). Lembro ter dito a Thiago que de poesia eu não entendia nada, e nem era minha prioridade. Mas, irônico, retrucou que isso não importava, podia muito bem ter pedido a sua cozinheira que escolhesse os preferidos dela. As duas outras pessoas a quem então pediu para listar os preferidos foram Antonio Houaiss e Cavalcanti Proença. Desconfio que o pedido de Thiago não tinha muito a ver com meu talento literário. Mas os três sempre estivemos nos agradecimentos.
Pois é, qual não foi meu susto ao ver aplicada a frase de Thiago de Mello à esperança de que o país consiga sair da depressão em que foi afundado pelos desgovernos do PT. Agora “as forças claras da verdade” não foram pisadas por botinas, mas embotadas pela ofuscação linguística e a ignorância.
Helga
Você enriqueceu o texto com a sua intervencao sobre Thiago de Melo.
Um forte abraço