Clemente Rosas

O Astrônomo (Vermeer).

O Astrônomo (Vermeer).

O simples olhar, sem viseiras, de um observador da realidade brasileira de hoje já o faz perceber que os trabalhadores industriais nada mais têm das características dos seus antepassados europeus, ao tempoda irrupção do marxismo.  Diferentemente daqueles que “nada tinham a perder, a não ser os seus grilhões”, nossos contemporâneos têm muito a preservar.

É de clareza meridiana a diferença: os operários do século XIX não tinham limite de jornada, férias, aposentadoria, assistência previdenciária, nem tampouco renda mínima que teoricamente lhes assegurasse uma vida familiar aceitável.  Foi, com certeza, sua luta política, ao longo de dois séculos, em paralelo com o efeito emulador da existência, a partir de 1917, de uma sociedade alternativa, supostamente mais igualitária e justa para com eles, que os levou às conquistas de nossos tempos.

No Nordeste brasileiro, sobretudo nos pequenos municípios do Interior, o emprego em fábrica é quase um prêmio, um símbolo de “status”, um meio de ascensão social.  Minha experiência como consultor de empresas me tem permitido sentir de perto o que um simples teorista talvez tenha dificuldade de ver.  Para aqueles jovens interioranos, cujas únicas alternativas de trabalho local são o cabo da enxada ou o emprego miserável na Prefeitura, servir à indústria é opção honrosa e compensadora.

Na minha terra natal, com o apoio de sucessivos governos, empresas têm escolhido implantar suas operações manufatureiras, ou parte delas, em pequenas cidades da Zona da Mata e do Agreste.  Ali elas contam com uma mão de obra motivada e criativa, que gosta do que faz e se sente bem retribuída.  Os mais graduados têm carros, os outros motocicletas.  O jegue e a bicicleta já não prevalecem como meio de transporte.

Permito-me dar um pequeno exemplo. A cidade paraibana do Ingá (a velha “Ingá do Bacamarte”) é hoje produtora única de um calçado esportivo de grande aceitação no mercado exterior.  A fábrica não contava com espaço externo que pudesse ser adquirido para ampliar a sua produção e atender a uma demanda crescente.  A alta direção da empresa anunciou então a abertura de mais um estabelecimento, em outra cidade.  Mas a coordenadora local pediu um tempo para encontrar e propor outra solução.  Em um “brain storming” com os colaboradores, a solução foi encontrada: as bancadas individuais, que serviam a operadores isolados, foram adaptadas para acomodar duplas. O efetivo e a produção dobraram, e a unidade do Ingá seguiu sobranceira, em benefício da empresa, dos empregados e do povo da cidade.

No plano nacional, não é de hoje que se reconhece que os trabalhadores da indústria automobilística constituem a elite da classe, e aí temos outro exemplo.  Até as greves são mais frequentes agora por parte de servidores públicos, enquanto os operários cuidam de preservar os seus postos de trabalho.

Em suma: se há, atualmente, uma classe que pode ser considerada espoliada, está não é mais o operariado industrial.  Se adotamos, para o excedente gerado pela produtividade do labor humano, o conceito marxista de “mais-valia”, não seria de tal classe que ela estaria sendo extraída.  O senador Cristovam Buarque, pensador que não se inibe em revisar teorias e propor novos conceitos, fala em uma “mais-valia triangular”.  É matéria para a reflexão dos intelectuais de espírito independente.

Os desvalidos dos nossos dias, os que “não têm o que perder”, são outros.  Mas isso já é assunto para uma nova abordagem.

 

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