Viajar de trem é uma das delícias do Velho Continente. Hoje, tomando o comboio que sai da Estação de Santa Apolônia, ao pé do rio Tejo, vou cumprir um dos propósitos dessa viagem. Uma promessa antiga, que tem a ver com os ancestrais de meus filhos. Sebastião me deixa no trem.
Gajate é um povoado do município de Pontevedra, na região da Galicia, cuja língua original é o galego, que muito se aproxima do português, vizinhas que são Galícia e o norte de Portugal. O galego, tanto quanto os outros idiomas originais de Espanha, foram massacrados ao tempo da longa ditadura de Franco, pelo artifício de nomear os mestres de escola sempre de outras províncias, para que a única língua de todo o país fosse o espanhol castelhano. Mas aqui, no velho continente, mesmo quando se tenta a força derrubar tradições, elas renascem.
Gajate é a mesma de quando a conheci nos primeiros anos de casada com filho de galegos, na década de 1970. Uma velhinha de negro, como se vestiam para sempre as que ficavam viúvas, veio a nosso encontro, abraçou-me forte: “casaste com xente de buena xente”. Conosco estava José Manuel Suarez Hermida, Seo Manolo, em uma de suas férias na Espanha, que cumpria religiosamente a cada dois anos. Orgulhoso do filho engenheiro, que em pretéritas férias com os pais em Gajate, por dois anos, aprendera as primeiras letras e nunca mais voltara ao lugar.
As mesmas cento e poucas casas, que não têm números, têm nomes. Os muros baixinhos de pedras a separar pequenas fincas. Águas límpidas que correm dos montes e se pode ouvir pelos caminhos desertos de automóveis (o mesmo som de suavidade cristalina que fui encontrar nas terras da Serra da Mantiqueira, no meu povoado de Nogueira). As pontes que remontam ao domínio romano, das músicas de gaita de fole, a mesma dos escoceses.
Lá fui encontrar dessa vez os netos de Seo Manolo: Marcus, filho de Rosário, com a mulher Lilia; Naia, filha de Rosário, com a filha Mona; Pedro, filho de José Hamilton, com a mulher, Adriana. Entramos na “Casa da Ponte”. Os mesmos móveis; o piano na sala; uma TV que, ao ligar, ainda transmite em preto e branco uma corrida de Fórmula 1; as camas postas com pesadas cobertas contra o frio nos cinco quartos do primeiro andar, como se a qualquer hora chegassem os filhos de Palmiro e Acela para as férias de verão. O porão abandonado, que outrora abrigava vaca, porcos e galinhas no rigoroso inverno. O canastro (o silo daquela época) ao fundo do quintal, tão lindo, todo construído de pedra.
Os de Gajate, nas primeiras décadas do século XX, tomaram o rumo de tantos europeus: deixaram o velho continente para buscar melhores dias no Novo Mundo. Palmiro Suarez foi um deles. Deixou mulher e filhos pequenos aos cuidados da casa e do campo e rumou para o Brasil. Quase todos que, de Gajate e povoados vizinhos, migraram nessa época, tiveram a cidade de Salvador, na Bahia, como destino.
Quando o primogênito, Manolo, completou 16 anos, Palmiro, numa de suas vindas em casa, levou-o consigo ao Brasil para ajudá-lo no negócio – casa de ferragens – que tinha em sociedade com Germano, um amigo galego. Manolo trabalhava de dia e estudava à noite. Concluiu o curso de Comércio. Era um bom aluno de matemática e o professor incentivou-o a continuar os estudos numa universidade, na qual ele teria boas condições para cursar engenharia.
Fui a primeira pessoa a ouvir essa história de Seo Manolo. Depois ele contou-a aos filhos, aos netos, aos amigos, e, quando a memória já fora embora antes dele, essa era quase uma ladainha repetida com lamento. Naquela mesma noite em que ele pegara o diploma e ouvira o incentivo do professor, criou coragem e foi pedir permissão ao pai para continuar os estudos. “Eu não lhe trouxe ao Brasil para ser doutor. Você veio para cuidar do negócio”. E concluía Seo Manolo: “naquela noite eu chorei…..”
Quando resolveu se casar, Manolo veio a Gajate buscar a noiva. As famílias eram vizinhas, a Casa da Ponte e a Casa da Rainha. Conheci Seo Manolo já viúvo de dona Aurita, que morrera em Gajate e lá havia sido sepultada. Confidente que eu era de meu sogro, ele me falou e até pediu: “se eu não morrer na Espanha, levem os meus ossos para colocar na mesma sepultura de Aurita”.
Gajate de há muito é um povoado de velhos, tendo migrado quase todos os seus habitantes. O cemitério aos fundos da igreja, onde está sepultada Dona Aurita, foi fechado e construído um novo em outro local. E não houve acordo com o padre, em várias embaixadas familiares, para abrir exceção. Foi nessa altura dos acontecimentos que eu sugeri, já agora à geração dos netos, que fizéssemos por nossa conta um cerimonial para não deixar de cumprir a vontade do velho patriarca. Naia cuidou da exumação e cremação no cemitério da Bahia.
A manhã está sombria e chuvosa. Subimos à Igreja de São Pedro, padroeiro de Gajate. Encontramos a sepultura de Dona Aurita. Ao pé da lápide, um cacto muito vivo. Lá jogamos as cinzas.
O único parente vivo que mora na Espanha, José Manuel Touriño, sobrinho de Seo Manolo, reservou para esse dia um restaurante em Puente Caldelas. Lá comemos uma fartura dos melhores frutos do mar, depois do pão, azeitonas, e um caldo gallego. Com o bom vinho espanhol, por certo. O pescado do terceiro prato, também soberbo, foi experimentado apenas pelos mais jovens, galegos de origem. Depois, passeamos na praia do rio.
O dia já começava a cair quando retornamos ao hotel na vizinha Pontevedra. Despedimo-nos num café de calçada, a tempo de comentar a emoção do dia, que por certo teve significados distintos para cada um de nós. Para mim, ficou a confissão de Pedro: “Nogueira, mãe, é Gajate”.
Proustiano, Teresa. De primeira. Final arrebatador.
Bj,
FD
Há muitos anos – embora fosse engenheiro – decidi estudar migrações por causa de histórias como esta, que tocam nossa alma.
Dois comentários tocantes de quem é do ramo. Agradecida aos queridos Fernando e Oswaldo.