A tese de “golpe parlamentar” utilizada pelo PT para condenar o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff carrega uma ambiguidade insustentável: aceita a legitimidade constitucional e, portanto, democrática, do processo, mas afirma que a decisão tomada foi um golpe. O PT e Dilma não podem mais negar que o processo do impeachment foi absolutamente legítimo, respeitando todas as regras e normas legais e constitucionais e seguindo o rito definido pelo Supremo Tribunal Federal com as suas longas e maçantes etapas. Ora, se o processo foi legítimo (como aceitam agora), o julgamento é inquestionável, juridicamente perfeito e politicamente indiscutível considerando a esmagadora maioria dos votos (muito mais do que os 2/3 exigidos pela Constituição).
Mesmo assim, Dilma e o PT insistem que houve um golpe porque, como repetem à exaustão, “não houve crime”. Entretanto, reconhecendo a legitimidade do processo, manifestam eles apenas a insatisfação com a decisão, insatisfação absolutamente compreensível e normal de parte de todo réu condenado. Em comentário ao último editorial da Revista Será (“Democracia é isso!”), o professor Luciano Oliveira defende a tese de “golpe parlamentar” afirmando que “não é inquestionável” que as pedaladas e os decretos sejam crime. Claro que não é inquestionável. Praticamente nenhuma acusação num processo jurídico é inquestionável a não ser quando o acusado se declara culpado. A decisão de um corpo de juizes (mesmo quando estritamente jurídico) raramente será “inequívoca e inquestionável” e sempre haverá questionamentos e apelações. Por isso, existe o contraditório, o advogado da defesa e o direito do acusado se defender. Se a existência de crime fosse completamente inquestionável nem seria necessário um julgamento. Mas aqui cabe a grande pergunta: “Quem tem o poder e a prerrogativa de decidir se houve crime ou não?” A ré e seu advogado de defesa? Não, esta prerrogativa é dos juizes, no caso do impeachment, do Senado federal pela maioria de 2/3 dos senadores.
Além do mais, no caso do impeachment de presidente os juizes são políticos e o julgamento é político de modo que a própria interpretação jurídica é mediada pela visão política dos juizes. Mas a defesa também não é política? Ou Dilma e José Eduardo Cardoso fizeram um arrazoado estritamente técnico e jurídico sem nenhum componente político na tentativa de “convencimento” dos juizes? A propagação da farsa da narrativa do “golpe” e a mobilização dos simpatizantes nas ruas têm sido utilizadas como parte central do jogo político para ganhar o apoio político (e não jurídico) dos juizes e para convencê-los de que “não houve” crime. Da mesma forma que os defensores do impeachment mobilizaram parcela da sociedade para dar força aos seus “argumentos” políticos.
O professor Luciano acrescenta no seu comentário que “só depois de aquilatada, inequivocamente, a existência de crime, no sentido jurídico do termo, é que o parlamento poderia, sobre isso, emitir seu julgamento político”. Neste caso, o parlamento seria “obrigado” a aprovar o impeachment? Ou, tendo a presidente a simpatia e o apoio de apenas 1/3 do Senado, poderia continuar no poder mesmo sendo, “inequivocamente” criminosa? Parece claro que, no caso de inequívoca demonstração do crime, não precisaria sequer de julgamento político, bastando o veridícto de afastamento da presidente do cargo.
Evidente que a disputa política e as ideologias estão por trás de qualquer julgamento (e até mesmo estritamente jurídico) e que o chamado “conjunto da obra” pesou para que Dilma não conseguisse sequer a exígua minoria de 1/3, os parlamentares, até com seus interesses eleitorais imediatistas, refletindo o sentimento da maioria da população brasileira de indignação com o desastre econômico e a onda de corrupção. A ideologia leva também o PT e seus aliados a combinarem o argumento jurídico com o falso confronto direita-esquerda e a absurda comparação do impeachement com o golpe militar de 1964, tentando mobilizar seus militantes e influenciar em parte dos juizes. No limite, parece uma desculpa de eventuais crimes de responsabilidade desde que praticados por um governo de esquerda. De modo que, se fosse para a “esquerda” ficar no poder, todo processo e qualquer decisão seria legítima? E ao contrário, é golpe porque tirou a “esquerda” do poder.
Esta aberração do ponto de vista das instituições democráticas tem um agravante: o que o PT e seus aliados chamam de esquerda não passa de um agrupamento de ideias e práticas ultrapassadas de estatismo primário e populismo assistencialista com uma grande dose de pragmatismo que alimentam a fome de poder. Os governos do PT não realizaram nenhuma mudança estrutural relevante neste país e se concentraram em medidas paliativas e assistencialistas que provocaram um populismo fiscal perigoso (principalmente com Dilma) que levou a esta crise econômica. O rótulo de esquerda tem sido o principal recurso publicitário utilizado à exaustão pelo PT e por Dilma para justificar e perdoar os seus erros e suas consequências. Dilma não se cansa de repetir que foi presa e torturada durante a ditadura, apresentando o fato como um atestado, uma licença ou desculpa a priori para tudo o que tenha feito (ou venha ainda a fazer) de nefasto para o Brasil e para qualquer crime de responsabilidade.
Meu caro Sérgio: Esse novelão sem fim já me cansou. Não vai nesse desabafo o mais leve desapreço pelos seus argumentos, até porque concordo com eles. O que me cansa é viver num país onde tudo se arrasta interminavelmente. Por isso fico com meu aforismo, que visa um alvo universal, mas se prende antes de tudo a países como o nosso, onde a impunidade e a injustiça são tão correntes e onde a tradição bacharelesca dá o braço à malandragem, que se tornou alta bandidagem muito bem blindada, e quase tudo acaba em conciliação ou chanchada. Encerro com o meu aforismo: A justiça é um cochilo da lei.
Amigos Sérgio e Fernando: Perfeitos em seus comentários. Apenas um acréscimo que me sinto responsável para fazer. Quando Sérgio fala na “absurda comparação do impeachment com o golpe militar de 1964”, faço um lembrete indispensável: LEIAM O DEPOIMENTO PESSOAL DE MIGUEL ARRAES PERANTE A CPI DO IBAD, recentemente publicado nos Cadernos da Memória e Verdade – Volume V, depois de 50 anos de engavetamento. Quem após a sua leitura, ainda fizer essa infamante comparação é simplesmente UM DESONESTO POLÍTICO, IDEOLÓGICO E INTELECTUAL!
Pode até ser que exista gente cansada do tema. Mas ainda há muito mais gente que sente a necessidade de textos límpidos, sem xingamento, com argumentação clara, detalhados sem serem monótonos, que esclareçam suas dúvidas. Sérgio C. Buarque tem a paciência da argumentação detalhada. Coloquei o link deste artigo na minha página de Facebook, e em poucas horas os compartilhamentos eram 27. Prova de que o artigo está preenchendo uma necessidade. Ainda bem que Sérgio Buarque está longe de estar cansado.
Partilho as abordagens do Fernando e da Helga, simultaneamente. Como observador, cansei do debate, mas como um pensador, o texto de Sergio Buarque é de fundamental importancia. Desvendar as teias costuradas pelas manipulações lulopetistas é de suma importancia para conhecer as rotas atuais e futuras destes aventureiros. Seus discursos estão mais vazios, mas se preparam, tenhamos certeza, para embates mais radicais lá na frente. Este resto de ano nos anuncia grandes embates – manifestações de rua, previdencia, privatização, reforma política, e outros. Assim, precisamos estar bem instrumentalizados.
Sérgio,
Você, como poucos, usa as palavras para revelar a verdade. Utiliza a lógica para desmontar argumentos ideológicos. Reduz a pó argumentos que usaram a palavra para turvar a verdade.
Sem xingar ou desmerecer ninguém.
Parabéns.
São irretocáveis os argumentos de Sérgio. Só um intelectual de alto gabarito teria a paciência e o zelo de destrinchar tão meticulosamente os argumentos como ele faz. Especialmente quando sabe de antemão que os que os lerão já comungam de sua visão e que os panfletários e sectários de sempre não se darão ao trabalho de examiná-los com isenção e abertura de espírito.
No mais, integro o time de Fenando e já vejo com algum enfado essa temática. Mas admito que a manutenção desse embate estéril pode estar longe de acabar porque, efetivamente, constitui meio de vida para muito sacripanta. Portanto, há de se ter paciência para suportar a travessia e esperar a passagem de bastão.
Cansaço não é indiferença:
Endereço este comentário antes a alguns amigos que concederam atenção a meu comentário precedente do que ao artigo de Sérgio Buarque, com o qual frisei concordar. Compreendo o desacordo de Helga Hoffmann ao tropeçar no meu enfado e ceticismo (que omiti). Embora não a conheça pessoalmente, sei do seu espírito militante e combativo. Não sou indiferente a toda essa situação gravíssima que vivemos (acho que nada tem a ver com uma crise conjuntural). Manifestei muitas vezes minha posição deixando claro o que apoio e o que combato em uma infinidade de posts e comentários no Facebook, sobretudo em artigos publicados nesta e noutras revistas eletrônicas, também no meu blog. Penso haver consenso geral entre nós. Citando nominalmento: Ivan Rodrigues, Afrânio Tavares e Fernando Dourado, que aparentam concordar com o meu cansaço, e Helga Hoffmann, que discorda. O ponto concernente à discórdia me parece uma questão secundária. Ainda assim, por razões de apreço e atenção a vocês, achei que deveria escrever este comentário.