O Capitão Gouveia e o bandido Mané Rosa
Ao iniciar-se a década de 1950, o cangaceirismo já havia sido extinto no Nordeste doze anos antes, com o extermínio do bando de Lampião. Além dos que morreram, vários jagunços desligaram-se em tempo dos grupos, voltando à vida de pequenos comerciantes ou homens do campo. Antônio Silvino, anterior a Virgulino Ferreira e o segundo em importância no mundo do cangaço, com o pulmão varado por um tiro de fuzil, rendera-se bem antes, e cumpriu longa pena na cadeia pública de Pernambuco. Quando, na Revolução de 30, Agildo Barata, à frente de tropas rebeldes da Paraíba, assediou a Casa de Detenção do Recife, último reduto da resistência dos governistas, o velho bandoleiro, do fundo da sua cela, mandou recado aos revoltosos, oferecendo sua adesão ao movimento. Agildo, compreensivelmente, a recusou. E ao final da pena, velho e sem poder, o antes temido quadrilheiro foi abandonado pelos proprietários que o protegiam, e que, segundo se dizia, chegaram a guardar dinheiro para ele. Morreu pobremente, na casa de parentes, em Campina Grande.
Embora nascido em Pernambuco, Manuel Batista de Morais – seu verdadeiro nome – teve grande atuação no vale do Paraíba, de que dão testemunho os romances de José Lins do Rego. Um dos seus “cabras da peste”, que, segundo tudo indica, passou pouco tempo no bando, chamava-se Gouveia, e vim a conhecê-lo já na maturidade, como administrador da Fazenda Caiçara, que meu pai herdou do meu avô.
Gordo, bonachão, marido de três mulheres, o seu Gouveia – ou Capitão Gouveia, como alguns ainda o chamavam – era respeitado na terra e nos arredores, e garantia a estabilidade da fazenda. Não contra camponeses, com quem meu pai nunca teve problemas: não cobrava foro pelos roçados dos seus “moradores”, nem vendia o leite do pequeno rebanho, que era destinado às crianças do lugar. Mas sim contra eventuais desordeiros, vizinhos impertinentes, ou comerciantes que não honrassem seus negócios, todos feitos na base da informalidade. Embora analfabeto, fazia de cabeça as quatro operações.
Mas havia, por outro lado, uns poucos remanescentes do cangaço que, cumprida a pena, não se dispuseram a encarar a dura vida no campo. Valendo-se da fama, passaram a extorquir pequenos fazendeiros, ou mesmo roceiros, solicitando “empréstimos” que os pacatos camponeses não se atreviam a negar. Foi este, suponho, o caso de Manuel Rosa, que andou visitando os moradores da Fazenda Caiçara e dos arredores, no Agreste Paraibano.
Soubemos do bandido pela conversa do nosso vaqueiro Severino, com quem íamos, à tarde, buscar o gado “casado” – o touro e as vacas amojadas ou com bezerros – minha irmã mais nova, ainda criança, escanchada nos ombros dele. Era um vaqueiro singular, sem cavalo nem “guiada”, que conduzia o rebanho do pasto para o curral apenas com comandos de voz. Foi ele quem nos deu conta do temor de todos, de serem achacados, e da queixa pela injustiça da situação.
Pouco depois, seu Gouveia verbalizou ao meu pai, não apenas a queixa, mas uma perspectiva de reação:
– Doutor, ainda ontem Afrísio tava me dizendo: a gente trabalha tanto pra ganhar um dinheirinho, e depois tem que dar esse dinheiro pra Mané Rosa… Não tá certo isso!
Meu pai, que sempre foi um homem pacífico, ouviu calado. Mas seu Gouveia, aparentemente, já havia tomado a si a solução do problema.
Passado algum tempo, Severino encontrou, num recanto afastado da fazenda, um cadáver em adiantado estado de putrefação. Avisou a seu Gouveia, que deu parte do achado a alguma autoridade policial de Juarez Távora (antiga Água Doce), então distrito do município do Ingá. Veio alguém, identificou o corpo de Manuel Rosa, e mandou que fosse enterrado. Perguntei depois a Severino:
– De que foi que ele morreu? De tiro, de faca?
– Ninguém sabe não. Tava podre, fedendo, não dava nem pra chegar perto…
Na verdade, algumas poucas pessoas sabiam. Meses após, puxei o assunto com o Doutor Evandro. E ele:
Foi Gouveia quem mandou fazer o serviço. Acho até que o rifle usado foi o dele. Mas não é pra vocês falarem sobre isso, em lugar nenhum.
O sossego voltou àquela região, e o segredo foi guardado por mais de cinquenta anos. Hoje, quando todos os possíveis envolvidos estão mortos, sinto-me livre para contá-lo. E penso que, com uma Justiça remota e ineficiente como era a da época, naquele lugar, a solução encontrada não merece censura.
Seu Gouveia, como ocorre com os gordos, não teve vida muito longa. Mas não se foi antes de ter a honra de cumprimentar o Governador da Paraíba, em visita à Fazenda Caiçara.
Clemente,
Foi com prazer que deparei na manhã de hoje essa sua bela história que reata com os deliciosos casos precedentes. De Antonio Silvino, na minha curta infância, lembro da frase lapidar que o pistoleiro teria proferido ao sair da cadeia. Indagado se tirara lições do longo cativeiro, disse que uma lhe ficara indelével: “Quem tem mais de 50 mil réis não fica lá por muito tempo”.
Delícia, Clemente, fico à espera do VII. Seu estilo é inconfundível, não há uma palavra superveniente. Texto e paisagens se complementam com rara felicidade. Prosa magra, direta e contida. Diferente da minha que, como seu Gouveia, é adiposa e esparramada. E, contrariamente ao jeito de ser dele, por vezes caudalosa. Obrigado.
Clemente, delicioso, biscoito fino. Histórias como essa, em torno do capitão Gouveia (capitão de cangaceiros!) são peças do imenso baú cultural do sertão nordestino. Do Nordeste semiárido e pastoril, milionário de tudo, exceto de dinheiro. Teatro de uma idade heróica, que como tal produziu em percentual acima do normal os três tipos de seres humanos excepcionais: o santo, o poeta e o soldado. Aqui metamorfoseados (diria algum modernista, involuídos, entortados) em beatos, cantadores e cangaceiros. É pena que ainda não tenha tido seu Gilberto Freyre. O que não impede que a gente de hoje o sinta com o coração e não escape a seu feitiço. E peça, como fez o Fernando e faço eu, mais e mais causos. Um volume inteiro. Sua responsabilidade é grande: 50 anos depois, só restou você para revelar o segredo de seu Gouveia. E olhe que os crimes estão prescritos. Todos…
Abraço,
LÁ
Amigos, os seus comentários parecem mais brilhantes do que o meu texto. Agradeço, realmente comovido. Tenho mais alguns causos para contar, e a minha responsabilidade aumenta com a expectativa de vocês. Farei tudo para corresponder a ela.
Só agora fui ler mais “Causos” contados por Clemente. Interessantíssimo. Tão longe do meu mundo que não sei o que comentar, quanto aos fatos. Que o escritor é muito bom eu já disse antes, a respeito dos primeiros “Causos”. Vale muito a pena ler mais “Causos”, para mim curiosos, de uma realidade que não conheço.
E concordo que um dia seria ótimo ter todos os “Causos” reunidos em livro.