João Rego

Marc Riboud
USA. Washington DC. 1967. An American young girl, Jan Rose KASMIR, confronts the American National Guard outside the Pentagon during the 1967 anti-Vietnam march.

Tenho, com certa frequência, esbarrado em posts e contraposts defendendo uma intervenção militar no Brasil.  Alguns até bem articulados em argumentos que, para seus autores, parecem sólidos e lógicos. Não me estou referindo aqui aos militantes de extrema direita, com os quais não há possibilidade de diálogo, mas sim a pessoas do meu círculo de amizade, honestas, profissionais exigentes e bons pais de família – cidadãos acima de qualquer suspeita.

Como “democrata radical”, tento refletir sobre esse fenômeno e coloco aqui um pouco do que penso, não na tentativa de converter alguém, mas com o intuito de organizar um pouco meu pensamento sobre o tema e, se possível, contribuir para compreendê-lo.

Primeiro, penso que, para um sujeito que, desde sua mais tenra infância, foi educado para ser um “bom cidadão”, fiel cumpridor das leis e tudo o mais, é uma enorme agressão ao seu espírito o bombardeamento de notícias, desnudando um secular e infame traço cultural da nossa elite política: a corrupção sistêmica.

O caos que se instala em seu espírito, enchendo de angústia seu cotidiano, negando-lhe a possibilidade de entender que os fatos estão vindo à tona exatamente porque algo muito importante e sólido para uma democracia está ocorrendo. Seria muito mais confortável não tomar conhecimento das “tenebrosas transações” que, durante décadas e décadas, trafegaram nos subterrâneos do poder.

AFORISMO PRIMEIRO – Em uma democracia, embora o cidadão seja obrigatoriamente contido pela Lei, que regula sua vida e limita seus desejos, no ambiente externo, onde flui o processo político-social, ele deve estar pronto para conviver com a incerteza e a diversidade ideológica, muitas vezes conflitantes e antagônicas, próprias de um ambiente de liberdade.

Um segundo aspecto é que um sistema de governo democrático funciona por meio de mecanismos de representação, ou seja, elegemos, para nos representar, aquele com quem minimamente nos identificamos, com suas propostas, perfil e discurso. Algo completamente imperfeito, pois não há garantias de que estes processos de identificação sejam verdadeiros e puros – de fato, nunca serão, pois, como diz o poeta, “grande é a distância entre a intenção e o gesto”. Do outro lado pode estar alguém mal-intencionado que, como um lobo em pele de cordeiro, busca encobrir com seu discurso os reais e inescrupulosos desejos…  E como tem lobo no ambiente político brasileiro!

AFORISMO SEGUNDO – Embora o sistema democrático seja imperfeito, como imperfeito e inconcluso é o sujeito, é necessário entender que as leis e as estruturas do Estado são resultantes de milênios de tentativas de conter, sob o manto da civilização, a pulsão e a barbárie que existe em cada ser humano – sendo o sistema democrático, porque aberto e autorregulatório, o melhor que a humanidade e seu processo civilizatório construiu até agora.

Espera-se que, com uma intervenção militar, o aparente caos em que vive o país, desde que a Lava Jato abriu a caixa de Pandora das elites políticas, se encerre, e a paz volte a reinar em seus espíritos, exatamente como antes, quando não sabiam de nada sobre corrupção sistêmica e a prática da propina como uma política de Estado. Trata-se de um grande equívoco ver a realidade com uma ingênua e infantilizada percepção, como se algum salvador da pátria, idealizado com qualidades imaginárias, pudesse ser escolhido para corrigir o país rumo ao Éden do progresso, da harmonia social e da moralidade pública.

Alguns teóricos vêm defendendo a tese de que, mesmo que tenhamos vivido várias décadas de prática democrática institucional, estamos ainda em uma semidemocracia, isto devido ao excesso de força e poder que, institucionalmente, os militares detêm, bem como a falhas estruturais nas instituições, que impedem que os ganhos atinjam toda sociedade. Embora não concorde com a tese da semidemocracia, por este viés, creio que talvez pudéssemos aplicar este conceito ao semicidadão e sua frágil cidadania.

AFORISMO TERCEIRO – Não há a possibilidade de consolidar-se um sistema democrático em uma nação, sólido e estruturado, sem o pleno exercício da cidadania.

Isto implica, dentre outras coisas – que não caberiam nestas breves reflexões – a ruptura de uma pratica de cidadania pueril, onde tudo se delega aos representantes e líderes políticos, dando-se as costas para o processo político, sob a alegação de que as atividades de alguém, como trabalhador, já lhe tomam suficiente tempo e energia.

Cidadania é uma construção social que se instala no cotidiano do cidadão, forjando uma sociedade civil, mesmo que diversa e muitas vezes conflitante, em sistemática relação dialética com o Estado.

AFORISMO QUARTO – A Democracia, por sua vez, não é um fim em si mesma, é um processo extremamente árduo, e que desafia a todos a participarem, expressando seus desejos e defendendo seus interesses coletivos – incessantemente, exaustivamente.

O desejo de intervenção militar é inspirado no insuportável desconforto de ver a realidade política, nua e crua, em seu cotidiano, tão distante de seu imaginário político perfeitamente idealizado. É um retorno à infância cidadã, um chamado de desamparo por um Pai forte e “interditor”…  Não há registro na História de que intervenção seja saída para fortalecimento democrático.

Alimentar e expressar esse desejo é abrir mão das nossas responsabilidades como cidadãos, jogando no lixo um importante legado, arduamente conquistado na redemocratização. É não entender que a crise que vivemos é a prática democrática intensa, operando rupturas nas instituições e na cultura política, preparando um ambiente para as novas gerações de políticos, empresários e cidadãos.

João Rego é membro do Movimento Ética e Democracia

www.facebook.com/etica.democracia

www.etica-democracia.org

 

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