Luciano Oliveira

Jornaleiro.

Costumo chegar atrasado aos acontecimentos. Chego agora mais uma vez, algumas semanas depois da descoberta, mediante a liberação de documentos sigilosos da CIA, de que o general Ernesto Geisel, quarto presidente da ditadura militar, não apenas sabia, mas autorizou a eliminação de “subversivos perigosos”. Dias depois de empossado, informado por seus generais do que estava acontecendo, teria passado um fim de semana de dúvidas e, afinal, dito “ok” à política de eliminação seletiva em curso, transferindo ao general Figueiredo, chefe do SNI e seu sucessor, a tarefa de autorizar as mortes caso a caso. Com isso, o novo presidente queria retomar o controle sobre os radicais do regime, os quais, durante a presidência de Médici, tinham adquirido uma liberdade de ação praticamente sem limites. O “modelo” não funcionou a contento. Se os “porões” dele foram informados, aparentemente não deram a mínima, pois continuaram matando com a mesma desenvoltura de antes. E Geisel, ele mesmo, teve no começo de 1976 de “chamar o feito à ordem”, como dizem os juristas, exonerando o comandante do II Exército sediado em São Paulo, general Ednardo D´Ávila Mello, sob cuja jurisdição ocorreram em sequência os assassinatos do jornalista Vladimir Herzog (outubro de 1975) e do operário Manoel Fiel Filho (janeiro de 1976) – nenhum dos dois um “subversivo perigoso” –, ambos tragados pela máquina de moer e matar gente que continuava agindo fora do controle do Planalto. E se tem uma coisa que militar não tolera, é a quebra de hierarquia! Foi assim em 1964, quando um atarantado Jango deu anistia a marinheiros rebelados – acho que ali decidiu-se a sua sorte (ou azar) –, como foi assim em 1976, quando Geisel deu um “despacho saneador” nos autos dos torturadores. Em vão.

O “alemão” não era um humanista, nem um democrata, e as cobranças por respeito aos direitos humanos endereçadas ao regime pelos bispos da CNBB irritavam-no particularmente. Mas quando, em 1976, ele demitiu o comandante do II Exército, e no ano seguinte também despachou para casa o general Sylvio Frota, ministro do próprio Exército – o candidato à sua sucessão que era o “queridinho” dos porões do regime –, todos nós, nós que tínhamos medo, demos um suspiro de alívio e, ambiguidades à parte, lhe ficamos reconhecidos. Talvez por isso tenha sido penoso, pelo menos para mim, ir aos poucos admitindo aquilo que hoje em dia é uma verdade solar: a máquina de torturar e matar opositores do regime que pegaram em armas não foi uma iniciativa local do que Elio Gaspari chama de “a tigrada”, mas um plano concebido e/ou aceito pelo Palácio do Planalto – e Geisel, que tinha estado fora do centro do poder durante a presidência de Médici, a ele aderiu. Como disse certa feita Hannah Arendt, “os homens normais não acreditam que tudo é possível”. E ela própria conta que quando ouviu pela primeira vez notícias sobre o extermínio de judeus naquelas proporções e sem qualquer utilidade pelo regime de Hitler, sobretudo num momento em que a guerra já estava perdida para os nazistas, achou que havia exagero nos relatos. Até onde me lembro, foi de certa forma o meu caso.

Talvez seja um exemplo do fenômeno psicológico conhecido como wishful thinking: preferimos acreditar naquilo em que é mais confortável crer. É desconfortável, e chega a ser desconcertante, acreditar que as figuras sinistras que aplicam choques, espancam, matam, esquartejam e fazem desaparecer corpos – tudo feito às escondidas – agem sob as ordens de chefes de estado que, por mais que tenham chegado ao poder por um golpe de estado autodesignado como “revolução”, são presidentes da república! Andam de gravata, recepcionam chefes de estado estrangeiros, têm seus retratos nas repartições, fazem discursos ao povo brasileiro, prometem – como o fez Médici – a volta à “normalidade democrática” etc. Preferimos acreditar que eles não sabem de tudo; ou que, se soubessem, poriam um fim àqueles horrores. (Ocorre-me, num parêntese, lembrar que também muitos alemães, depois da II Guerra, preferiram continuar acreditando que Hitler não sabia de tudo o que se passava em Auschwitz; e que muitos comunistas não acreditavam que Stalin, o “pai dos povos” que posava com criancinhas, não sabia de tudo o que se passava no Gulag. É humano, é demasiadamente humano!)

Diz-se que agora, com a divulgação dos documentos da CIA, a figura histórica de Geisel deve passar por uma revisão – para baixo, naturalmente. Ok. Apenas lembro que quem já se debruçou mais detidamente sobre aquele período, e sobre o papel que o “alemão” desempenhou nos “anos de chumbo”, já fez essa revisão faz tempo. Foi o meu caso. Geisel, por quem eu torcia na quebra de braço com a “linha dura” dos militares, me “decepcionou”. No ano de 1977, Severo Gomes – rico empresário paulista, mas de forma alguma de extrema-direita –, que era ministro da indústria e comércio de Geisel, foi demitido depois de uma altercação pública num encontro social com um “linha-dura” do regime. Ao ser exonerado, deu uma declaração, publicada não lembro mais onde (naquela altura, a censura à imprensa tinha arrefecido), em que afirmava que Geisel conhecia e era a favor das torturas – ou algo assim. Aquilo foi um choque para mim. Mas, se bem me lembro, preferi continuar achando que a acusação era um tanto suspeita: afinal, vinha de alguém magoado com o presidente. Com o passar dos anos, a credulidade foi sendo desmontada pelo volume de informações que foram aparecendo. Finalmente, num volume publicado em 1997 pela Fundação Getúlio Vargas, contendo uma longa entrevista com o presidente dada ao CPDOC e intitulado Geisel, o ex-presidente assumia o que seu ex-ministro havia denunciado: “Acho que a tortura em certos casos torna-se necessária” – disse ele. No mesmo parágrafo em que diz isso, Geisel, inutilmente, faz uma pirueta tão impossível quanto demonstrar a quadratura do círculo. “Não justifico a tortura”, ele enuncia como uma espécie de princípio, para revogá-lo na sequência: “mas reconheço que há circunstâncias em que o indivíduo é impelido a praticar a tortura, para obter determinadas confissões e, assim, evitar um mal maior!” (p. 225). Foi quando li isso que me dei efetivamente conta do quanto tinha sido bobo na minha credulidade.

Agora, pela repercussão na imprensa dos documentos da CIA, o grande público fica sabendo que, além de apoiar as torturas – seletivas, naturalmente –, ele também apoiava os assassinatos – seletivos, naturalmente. Ora, mesmo sem querer ser um chato, observaria que isso também não constitui nenhuma novidade para quem já se debruçou sobre o assunto. No cartapácio sobre a ditadura militar, iniciado em 2002 e só concluído em 2016, de Elio Gaspari, o leitor atento encontrará várias confirmações disso. Dou só um exemplo. No quarto volume, A Ditadura Derrotada(Companhia das Letras, 2003), o autor reporta um diálogo de Geisel, antes da posse na presidência, com o general Dale Coutinho, que viria a ser seu ministro do exército, no qual, depois de devidamente informado já naquela altura sobre o que estava acontecendo, o “alemão” diz: “Ô Coutinho, esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser” (p. 324). Na verdade – retomando uma expressão que o finado Henfil usava para ironizar nossa inocência de colonizados que só acreditava no que se dizia depois que a imprensa americana dava a notícia –, na verdade, dizia eu, o que existe de novo é que dessa vez “deu no New York Times!”. Para concluir, o que dizer sobre o “alemão”?

Ernesto Geisel, como Getúlio Vargas – cuja Polícia Especial torturava à vontade –, como Floriano Peixoto – cujos “jacobinos” degolavam numa boa – faz parte da nossa história. E essa história de esperar o famoso “julgamento da história”, para só então emitir um julgamento definitivo, é estória! Porque também os historiadores, por mais honestos que sejam, estão nela imersos. Então… Além disso, não sou historiador, sou apenas um articulista. Nada posso dizer além do que sinto. E o que sinto é o que se segue. Em fevereiro de 1976, depois das mortes de Vladimir Herzog e de Manoel Fiel Filho, seguidas da exoneração do comandante do II Exército que tinha deixado os “porões” fazerem o que bem entendiam, amigos meus foram presos em Aracaju, onde eu vivia. Todos foram torturados, mas dias depois de sua prisão a imprensa do Sudeste (porque a censura já não era o que fora) noticiou o assunto, e uma semana depois de serem presos (porque já não havia “desaparecimentos”) todos emergiram – com marcas de tortura, mas vivos – de não sei que círculo do inferno onde passaram sete dias. No momento em que os revi, e em que os abracei, devo ter sido grato a Geisel, porque o sentimento geral, e não só o meu, era de que o pior tinha passado. Geisel morreu em 1996, treze anos depois de deixar a presidência. Espero que a terra não lhe tenha sido muito pesada!

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“O que demasia na gente é a força feia do sofrimento, própria; não é a qualidade do sofrente” (Riobaldo, no Grande Sertão: Veredasde Guimarães Rosa).