Tudo começou com um passeio ao cemitério de Montparnasse, um local aprazível para celebrar os primeiros dias de primavera. Logo à entrada principal, poucos passos à direita, estão lado a lado os túmulos de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Tanto já passara por ali desde que os dois tinham morrido, que Emílio se comprazia mais em ver as pessoas que se perfilavam com ar solene diante daquele singelo marco parisiense do que em ele próprio mergulhar em busca de suas reminiscências e resgatar as únicas vezes que vira o casal na região. Ele, no térreo do Café de Flore, em Saint-Germain. Ela, à porta do La Closerie des Lilas, já “viúva” e também a caminho de rápido desfecho, com o invariável turbante e atitude de quem já fora bela.
Gilbert e Florence se sentaram à mesa de sempre, a que fica à direita da porta que conecta o terraço ao bar. Saudados por Stéphane, o garçom-pintor que tem o cavanhaque mais bem cuidado da cidade-luz, reagiram timidamente às palavras efusivas de boas-vindas à Maison Péret. “Sim, ei-la aí a primavera. Mas hoje é inverno nos nossos corações”. Como ele não reagiu, Florence foi à carga: “Fazem três anos. Acabamos de voltar do cemitério. Aliás, não sei sequer o que a gente faz aqui na rua Daguerre, francamente. Por mim, teria ido direto para casa. Foi Gilbert que insistiu para que viéssemos”. Claire, a filha do casal, falecera aos 24 anos, num 10 de abril como aquele. Stéphane abriu os abraços: “É duro. Fiquem à vontade, não há pressa”. E voltou ao balcão.
Naquela manhã, Emílio observou uma japonesa que colocou uma orquídea na sepultura do filósofo num jarrinho tão delicado que não deve ter tido vida longa num lugar aberto à intempérie e aos passantes. Contrita e delicada, volta e meia ela levava um pequeno lenço aos olhos rasgados. Contemplando-lhe a elegância impecável, ele ainda pensou em acompanhá-la até a saída e lhe perguntar de onde vinha tanta devoção. E, se ela aceitasse, poderiam descer a rua até o La Coupole onde tomariam uma bebida e conversariam suavemente até que o néon do La Rotonde anunciasse a noite. Preferindo deixá-la em paz, ele seguiu caminho até o túmulo do cantor Serge Reggiani, próximo à saída da rua Froideveaux e de lá sairia pelos fundos.
“E imaginar que possa haver um Deus. Francamente, às vezes eu o desconheço. Você sempre tão racional, tão cartesiano, e agora me sai com uma pabulagem dessa. Onde já se viu? Que Deus é esse que leva das moças a mais bela, a que comprou com a poupança da vida as obras completas de Rousseau numa edição do século XVIII? Que era amiga dos maiores concertistas de sua geração… Que aos 20 anos conhecia meio mundo e falava cinco línguas. E você ainda deixa aquele imbecil falar de Deus na nossa frente e assente bovinamente. Já não falo nem de perder meu respeito, falo de você não poder se olhar no espelho. Deus para mim morreu há exatos três anos. ´C´est fini. Fini, fini, fini`. Você me compreende? Pode dizer que blasfemo. Tanto pior”.
Se pudesse escolher um local onde gostaria de ser enterrado, Emílio Kuss, uruguaio de nascimento e cidadão alemão, certamente que também optaria pelo cemitério de Montparnasse. Ao lado de Maupassant e do amado Beaudelaire, o poeta dos poetas, estaria em boa paz. Até gestionara na funerária Maurice Beer, no Boulevard Edgar Qiuinet, sobre as providências a tomar. Impunha-se morar e morrer em Paris. Não obstante, mesmo que as hipóteses acima se enquadrassem num grau razoável de possibilidade, o problema era que a lotação da necrópole estava completa há anos. “Vá ver Montrouge, Monsieur, é aqui perto. Fica numa colina simpática, e o acesso a seus futuros visitantes será facilitado pelo metrô. Aqui na frente, nem pensar”.
Stéphane era garçom tarimbado e não lhe faltava ousadia. Por sua conta e risco, trouxe um pires de salame seco da Auvergne e dois cálices de Chablis. ´Voilà, é convite da casa`. Gilbert tomou um gole e foi à carga. O que poderia ter dito ao pastor? Acaso o homem não tivera a melhor das intenções ao recitar aquelas platitudes? De mais, não estavam zelando bem pela memória da filha? Não tinham deixado a vida e seus consultórios em Clermont-Ferrand para ficar ao lado dela depois de morta até que a vez deles chegasse? O que mais poderiam fazer senão continuar a promover concertos em sua memória pelas mãos divinas de Andrëi Korebeinikov e Julien Libeer na sala Cortot? Quantas vezes ele já não dissera que não tinha outra missão na vida? ´Oh, putain`.
Aquilo irritara Emílio. Não lhe soara verdadeiro. Susan Sontag morrera em Nova York e conseguira ser enterrada em Montparnasse. É verdade que talvez tivesse acionado um lobby poderoso de literatos para ter o desejo atendido. Averiguaria. De resto, quem queria saber de visitantes, Madame? Poderia haver consolo maior do que ficar quieto em seu canto, em boa e silente companhia? Era nisso que Emílio costumava pensar para entreter as longas caminhadas. Na maior parte das vezes, ia até a Avenue du Maine e lá subia no primeiro ônibus verde que estivesse passando em direção à margem direita. Mas naquele dia resolveu ir à rua Daguerre, onde lhe tinham recomendado um restaurante onde conservantes, comida congelada e microondas eram banidos.
Era sempre assim. Depois do desabafo, a situação serenava. No fundo, um se apiedava do outro infinitamente e cada um de si próprio a não mais poder. Pedidos mais dois Chablis, Gilbert convenceu-a de que poderiam dividir uma tábua de frios com pão de centeio. E, chegando em casa, não sairiam mais, salvo ele que tinha que levar Bono para um passeio no parque de Montsouris, o preferido de Lênin. Ela então se entregaria à contemplação das fotos e, ao entardecer, tomaria o remédio para conseguir dormir. Enquanto estivessem ali, eram obrigados a manter certa linha, a prosear com Stéphane, que se esmerava em ser leve e bem humorado, e, como já ocorrera, a conversar com um vizinho de mesa ocasional para desviar a dor do alvo preferencial.
Emílio chegou ao restaurante apinhado. O garçom trajava colete, tinha bigodes arrebitados nas pontas e um cavanhaque tão brilhante que parecia parafinado. Ele encaminhou-o a uma mesa praticamente colada à de um casal negligentemente trajado, e que falava com um sotaque que não era parisiense. Diante de uma taça de Pouilly Fumé, Emílio aceitou um pires com amendoins descascados e prestou discreta atenção à conversa que acontecia a menos de um metro. As opções do cardápio eram tantas que esperaria um pouco mais para ver o desfile de pratos e desempatar o páreo a olho nu. Mas uma truta defumada com raiz forte poderia ser boa opção. Aproveitando que o garçom trouxera um prato frio ao lado, pediu água com gás e uma recomendação.
“O que eu vou dizer é meio idiota, mas você ouve se quiser. Claire, nossa Claire, repousa hoje ao lado de Marguerite Duras e não tão longe de Beaudelaire, seu poeta mais querido. De resto, é uma honra para ele. Quando ele pensou que uma criança de 14 anos recitaria de cor ´Les fleurs du mal` numa festa de fim de ano, e faria chorar os professores mais sisudos do liceu? Você renega Deus e eu a entendo. Mas dentro do mal, conseguimos o melhor. Sepultá-la ali naquela quadra me levou a mobilizar meia república em três dias. Nunca agradecerei o bastante aos Michelin. E saber que a ela vamos nos reunir quando nossa hora chegar, é reconfortante. Claire teve uma vida breve mas dourada. Mais do que fazemos, ninguém fez, faz, fará ou faria. Voilà”.
Discretamente aconselhado por Stéphane, como se faz em Paris, Emílio pediu o salsichão de Lyon ao pistache com salada de batata e sua maionese. Fatalmente passaria ao tinto e um Malbec Cahors a 30 euros lhe pareceu a garrafa certa para o momento. Enquanto aguardava, a conversa ao lado se desdobrava e tudo ficava a nu como caules despetalados. Foi, portanto, com muita naturalidade que quando seu prato chegou, o casal lhe desejou efusivamente ´bon appétit`. Foi só ao agradecer e olhá-los nos olhos que ocorreu a Emílio que nada em Paris era fortuito e que a vida era exuberante em maquinações as mais inconcebíveis. Levantando a garrafa, perguntou ao cavalheiro e à dama se poderia lhes oferecer um cálice? “Uma garrafa é muito para mim. Embora talvez pouco para três”.
Epílogo
Já era noite fechada quando Gilbert e Florence se despediram de Emílio na descida da estação de metrô Denfert Rochereau. A caminho de casa, enquanto caminhavam com inusitada leveza pela avenida Général Leclerc para espantar os eflúvios da bebedeira, eles tinham certeza de que fora Claire quem lhes mandara Emílio naquele dia que começara tão sombrio. “Oui, ça c´est Paris, quoi“, ele quase gritou. E pela primeira vez em muito tempo, teve a impressão de que Florence sorria. Chegando em casa, talvez ela deixasse que Gilbert abrisse o piano e tocasse as notas de Erik Satie que só se ouviam ali quando ela saía. E foi assim que tarde da noite as notas de “Once upon a time in Paris” ecoaram na sala da rua de la Tombe Issoire.
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