13 de dezembro de 2018
Os garotos da favela do Bode retornam de mais uma partida noturna no campo de futebol bem aqui, em frente ao prédio onde moro. Um imenso e potente poste difunde seus raios pelo calçadão da praia do Pina e pelo campo mal cercado de alambrados enferrujados pela maresia. Passa um pouco das dez horas quando retornam para casa. Ainda estou acordada e ouço, pelo som que sobe da rua Ondina, seus gritos sem sentido que semelham de guerra.
Se estivesse na portaria do prédio, que sabe tudo o que se passa no sobe e desce dos apartamentos e na rua, saberia do ódio de qualquer um deles, porteiro, zelador, vigia, supervisor, contra essa corja de desocupados, bandidos, negros, favelados, vagabundos. Eles que estão fragilmente protegidos pela muralha que separa os moradores do Edifício da corja. Que mais tarde terão de sentir seu cheiro, seus pregões evangélicos e seus assaltos no transporte público que os levará de volta para casa.
Há um ódio espalhado pela sociedade brasileira. Em camadas. Esse ódio, há tanto escondido pelo que Sérgio Buarque de Holanda nomeou de “cordialidade” (que não se confunda o conceito dele com o senso comum desse substantivo/adjetivo), aparece à luz do dia. Abriu-se uma torrente de águas represadas que se espalham em esgotos a céu aberto. Não é de hoje.
A crise atual, do desemprego, do trânsito insuportável, da violência urbana, potencializou o ódio, e o medo veio por acréscimo. Os amigos e as famílias de classe média viram o cimento que unia as paredes e colunas de seus lares se fragmentar em divisões a favor e contra. As redes sociais difundem diariamente a semente do medo: de doenças, de assaltos, de vírus, de fake news. Viver passou a ser um ato de coragem e, às vezes, uma afronta ao outro. A um pedido, “por favor não me mande mais mensagens de terror pelo WhatsApp, sou velha, aposentada, e me julgo no direito de ter sossego”, tenho como resposta: “Sossego? Isso ninguém tem no Brasil de hoje”.
É fácil cultivar esses sentimentos numa cidade como o Recife. Do consultório de meu cardiologista, no alto de uma das torres (o nome edifício caiu de moda: agora são torres, empresariais, com quase um exército de segurança para adentrar) vizinhas ao shopping Riomar, ele me mostra os mocambos construídos praticamente dentro do rio, as palafitas, margeando a rua das Oficinas, para quem sai da avenida Antônio de Goes em direção à ponte Paulo Guerra. “Um desastre anunciado”, ele diz, “para o qual nada faz a prefeitura”. João Carlos Paes Mendonça “limpou” parcialmente o terreno para os seus empreendimentos imobiliários. Porém o mocambo, numa cidade como o Recife, depositária dos rios apodrecidos da Zona da Mata, reproduz-se ad infinitum.Como raiz braba. Tira daqui, nasce ali. Josué de Castro sabia disso.
As palafitas estragam a vista do passeio de catamarã pelo rio Capibaribe, nosso rio, essa serpente sinuosa que corta a cidade, cantada assim por nosso poeta:
“A gente da cidade / que há no avesso do Recife / tem em mim um amigo, / seu companheiro mais íntimo. / Vivo com esta gente, / entro-lhes pela cozinha; / como bicho de casa / penetro nas camarinhas. / As vilas que passei / sempre abracei como amigo; / desta vila de lama / é que sou o amante, que abraça / com o corpo mais confundido; / sou o amante, com ela / leito de lama dividido”. (do poema “O Rio”, de João Cabral de Melo Neto).
O bode expiatório aqui não é o sangue negro correndo nas veias, como mostra William Faulkner em seu magnífico “Luz em Agosto”. É essa lama prenhe de caranguejos e fezes a se autoalimentarem. O ódio é o mesmo nascido no massapê da cana-de-açúcar, do usineiro José Lopes, dono da Usina Estreliana, quando matou à queima roupa em 1964, de cima de seu alpendre da Casa Grande, os cinco camponeses que o afrontaram para uma demanda trabalhista, sem ainda saberem eles, os trabalhadores, que a Lei de Terras promulgada pelo governador Miguel Arraes já havia sido pisoteada por botas militares.
Como se atrevem? A colocar na universidade pública e gratuita que acolhe os estudantes das escolas particulares, gente da ralé mal formada? A distribuir benesses do poder com quem nunca comeu mel? Essa é uma camada. Que arreganha os dentes. Ou quer se armar para se defender dos bandidos com as próprias mãos. Há ainda os que odeiam os “irmãos” que agora juram não apenas sobre a constituição, mas também sobre a bíblia. Não se trata, aqui, de minorias. São maiorias. Quanto aos que estão fora das fortalezas, defendem-se como podem, com seus gritos de guerra desarticulados.
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