O título já deixa claro: não é artigo, nem ensaio (para isso, precisaria consultar bibliografia) e também não é ficção ou crônica, minha praia atual. São impressões pessoais, a partir do que tenho conversado com jovens professores, na faixa entre 40 e 50 anos, em plena atividade acadêmica. Jovens em relação a mim não apenas na faixa etária, mas sobretudo por estarem atuantes em universidades públicas. A universidade mudou muito desde que me aposentei e me afastei radicalmente das lides acadêmicas. Porém, como dizia meu professor e depois colega de departamento da Unicamp, Octávio Ianni, a gente nunca se livra dos pecados que cometeu. Por isso, o rico diálogo com essas jovens professoras, uma delas ex-orientanda na Unicamp, levou-me a escrever essas impressões, com meus olhos de hoje, afastada desse mundo que um dia fez parte de minha vida.
Os assuntos acadêmicos voltaram à minha sala povoada de literatura em duas ocasiões em que recebi visitas em casa. Primeiro, à época da Fenearte, a feira de artesanato que acontece anualmente em Olinda em meados do ano. E agora, na passagem do ano. Conversas boas e intermináveis sobre livros, sobre teorias, sobre o fazer cotidiano de quem lida com atividades de ensino e pesquisa. Entre crises financeiras, outras mudanças, como a maior carga horária dos professores, constrangidos a publicar igual aos acadêmicos americanos, há uma nova realidade nas universidades públicas brasileiras que veio para ficar: as cotas para alunos negros e pobres.
Já de princípio deixo claro meu ponto de vista: sou radicalmente a favor das políticas públicas de cotas para pobres e negros e oriundos do ensino médio em colégios públicos.
Sem falar na oportunidade que abre para os que têm acesso a tais vagas, antes privilégio dos bem nascidos, cujas famílias podem pagar colégios particulares caros e bons, atenho-me aos benefícios indiretos para os estudantes e professores da rede pública de ensino universitário.
Os jovens riquinhos que entraram na universidade pós-cotas, estão tendo uma oportunidade que não tiveram na infância e adolescência: conviver com outras classes sociais. Essa convivência de classes, que se dava na rua, no espaço público, nos ônibus, mesmo separados pela barreira da escola particular, aconteceu até outro dia. Até a minha geração, pelo menos.
Os pobres riquinhos de hoje vivem aprisionados em seus prédios gradeados, no transporte para as escolas, nos espaços de lazer. Não sabem o que é andar pelas ruas. Sempre trancafiados, qual prisioneiros, de uma cadeia para outra. Exagero de propósito. Então chegam à universidade. A sobrinha de uma de minhas interlocutoras entraria no curso de Engenharia Química, o segundo mais concorrido no vestibular da Unicamp, depois apenas da Medicina, não tivesse perdido a vaga para um que entrou pela cota. A família se revoltou. Ela? “Tá certo, pai, o direito é dele. Eu vou para São Carlos, onde também passei no vestibular”.
Que mocidade está chegando por aí, hein? Essa do diálogo anterior, teve, ainda no colégio, uma oportunidade semelhante à das cotas. De vez em quando alguns botam as unhas de fora e nos surpreendem positivamente. E ficam os velhos, os de minha geração, apregoando fórmulas abstratas: que piorou a qualidade do ensino nas universidades, que precisam melhorar primeiro as escolas do primeiro e segundo grau. As mudanças podem começar de ponta cabeça, ou de cabeça para baixo, como dizemos com mais graça no nosso linguajar nordestino. Com as cotas, as universidades brasileiras estão cumprindo uma de suas missões mais nobres: contribuir para mudanças na sociedade.
Numa sociedade que chegou a tal ponto de segmentação social (aqui nem estou considerando o diferencial de renda), abrir esse espaço no campus é uma grande aposta a médio prazo. Num primeiro momento, pode causar impactos negativos, como o rebaixamento no ensino, e no aprendizado das disciplinas, na formação profissional. Então eu argumento: e o que esses riquinhos vão aprender saindo de suas gaiolas? Também os professores das áreas de humanas. Seus “objetos de estudos” estão sentados nas salas de aula, desafiando-os a pensar a cores e ao vivo a sociedade distante de suas pesquisas, incomodando-os em suas certezas.
Resultados inesperados têm aparecido. Será que não estamos precisando de jovens formados para a vida, tanto quanto para a profissão? Conhecendo quem mora e vive em agruras que eles estavam longe de saber, a não ser pela fria imagem da tv e das redes sociais?
A discussão de hoje, entre o café da manhã e a barraca de praia na frente de casa, foi das mais interessantes. A jovem professora/pesquisadora, embora simpática em abstrato à política das cotas, citava exemplos da desconsideração que esses jovens provenientes de bairros populares e escolas públicas têm para com um bem público tão precioso como é a universidade.
Fiquei questionando: mas será que isso tem a ver com as cotas? Não seria produto de um momento de descrença e desalento que atinge a todos, de dentro e de fora da universidade? Se Karl Marx não tivesse escrito mais nada além do Fetiche da Mercadoria, no primeiro capítulo do Capital, já teria dado uma contribuição enorme às ciências sociais. Ele construiu esse conceito a partir de estudos filosóficos que lastrearam suas teorias. E continua sendo uma ferramenta útil até hoje. Às vezes, em forma de bode expiatório. A culpa dos problemas da velha Europa, por exemplo, seria dos imigrantes. É mais fácil atribuir velhos problemas da universidade às cotas.
O problema não são esses jovens pobres e negros e periféricos na universidade. Eles podem até ser parte da solução.
Oi, Teresa!
Adorei seu texto!
Partilho-o em gênero, número e, em relação ao grau, faço uma confissão: não gostando da idéia de raça, uma das mais mortíferas da história, sempre tive uma espécie de antipatia instintiva (nada muito elaborado) em relação à idéia de cotas em virtude da raça – sobretudo levando-se em conta o fenômeno da miscigenação, bem brasileiro, no qual depositamos muita fé no passado, e que depois passou a ser no mínimo desacreditado pela movimento negro.
Em compensação, sempre fui a favor de cotas sociais, a partir do critério da formação na escola pública, pois sempre achei que esse critério, num país como o Brasil, recobria o critério racial…
Mas enfim!
Parabens!
Luciano Oliveira
Subscrevo integralmente o seu comentário, Luciano! Sou favorável às cotas sociais, mas duvido dos bons efeitos das cotas raciais. Afinal, qual o critério seguro para definir um afrodescendente, em país em que quase todos temos sangue negro, como afirmou Gilbertto Freyre, há mais de oitenta anos? O do autorreconhecimento? Quem se enquadraria? Aqueles puro-sangue? Os meio-sangue (mulato é politicamente incorreto…)? Quarteirões? Octorunos? (Neste último grupo eu me enquadro). Pode-se provocar sentimentos racistas em brancos pobres preteridos por negros ricos, nas universidades. Somos todos mestiços. O brasil não é os Estados Unidos.
No mais, meus cumprimentos a Teresa, por provocar o debate sobre o tema, de forma tão inteligente.
Retifico: Brasil!
Meus caros Luciano e Clemente,
Obrigada pelos comentários. Concordo com vocês sobre a complexidade da questão racial brasileira. Em “Trama da Desigualdade, Drama da Pobreza no Brasil”, minha tese de Livre Docência, trato dessa questão, que caberia melhor em um artigo do que numa réplica, que, por natureza, carece de ser ligeira. Tenho apenas a acrescentar um instigante diálogo em uma de minhas pesquisas de campo, lá se vão décadas, em finais da década de 1970. Entrevistava uma mulher de meia idade que aparentava velha. Branca, de olhos azuis. Já não lembro sobre qual assunto ela falava, quando disse, “dona moça, mas é assim para nós, negros”. A concepção racial daquela mulher era muito clara: pobre é negro.
Contudo, mesmo com toda uma história que carrega essa frase, bem colocada por vocês dois, não questiono a lei. Negro é pobre. Negro rico não busca o direito da cota. Não é nem negro. Essa história de dizer que a cota deveria ser baseada apenas nos pobres critérios de rendimento para estabelecer classes sociais é mais uma firula, não apropriada no discurso de vocês dois, por certo, mas pelos que desejam que permaneça o privilégio dos ricos na universidade pública. Quem se diz negro é pobre. Ponto final.
Teresa adverte que o texto nem está de acordo com as liberdades e exigências da ficção, nem obedece às exigências da análise baseada na realidade. O que dizer? O tema é o das “impressões”? Pois eu tenho má impressão de qualquer política pública baseada em emoção, sem avaliação. Seja cotas, seja porte de armas. E o quiproquó recente, quando a USP resolveu barrar das cotas para escolas públicas os alunos de um dado colégio, sem dúvida um colégio público, mas com nível de excelência que dava aos seus alunos vantagem competitiva? Aqui as cotas já são um emaranhado tal que há assessores especializados que ajudam os estudantes a navegar pelo sistema de cotas e, dada a nota de corte, escolher o sistema que lhe dá mais probabilidade de entrar. Sem falar da judicialização, que já se instalou também nas cotas, e não se sabe a quem atribuir a responsabilidade de decidir a negritude de alguém quando há questionamento. Outra impressão que tenho, em nosso país mestiço, é que tudo o que estudantes universitários negros relatam de dificuldades que tiveram no básico e no curso secundário, e na vida estudantil em geral, são perfeitamente redutíveis à situação de pobreza, e não à cor da pele. Aliás, em contato com acadêmicos sul-africanos, na Cambridge inglesa dos 1970s, eu já aprendi que nem na África do Sul havia discriminação contra negro se fosse rico. E remuneração de acadêmico era de rico. Então vou lembrar uma escritora jovem, negra, natural da Zâmbia, de onde emigrou para Baltimore USA, aos 8 anos de idade. Hoje ela é professora de literatura na Universidade da Califórnia Berkeley. Eis sua conclusão, em longa discussão sobre empatia na vida e na literatura: “Se igualdade é o objetivo, a empatia por si só não nos leva lá.”