Teresa Sales

O título já deixa claro: não é artigo, nem ensaio (para isso, precisaria consultar bibliografia) e também não é ficção ou crônica, minha praia atual. São impressões pessoais, a partir do que tenho conversado com jovens professores, na faixa entre 40 e 50 anos, em plena atividade acadêmica. Jovens em relação a mim não apenas na faixa etária, mas sobretudo por estarem atuantes em universidades públicas. A universidade mudou muito desde que me aposentei e me afastei radicalmente das lides acadêmicas. Porém, como dizia meu professor e depois colega de departamento da Unicamp, Octávio Ianni, a gente nunca se livra dos pecados que cometeu. Por isso, o rico diálogo com essas jovens professoras, uma delas ex-orientanda na Unicamp, levou-me a escrever essas impressões, com meus olhos de hoje, afastada desse mundo que um dia fez parte de minha vida.

Os assuntos acadêmicos voltaram à minha sala povoada de literatura em duas ocasiões em que recebi visitas em casa. Primeiro, à época da Fenearte, a feira de artesanato que acontece anualmente em Olinda em meados do ano. E agora, na passagem do ano. Conversas boas e intermináveis sobre livros, sobre teorias, sobre o fazer cotidiano de quem lida com atividades de ensino e pesquisa. Entre crises financeiras, outras mudanças, como a maior carga horária dos professores, constrangidos a publicar igual aos acadêmicos americanos, há uma nova realidade nas universidades públicas brasileiras que veio para ficar: as cotas para alunos negros e pobres.

Já de princípio deixo claro meu ponto de vista: sou radicalmente a favor das políticas públicas de cotas para pobres e negros e oriundos do ensino médio em colégios públicos.

Sem falar na oportunidade que abre para os que têm acesso a tais vagas, antes privilégio dos bem nascidos, cujas famílias podem pagar colégios particulares caros e bons, atenho-me aos benefícios indiretos para os estudantes e professores da rede pública de ensino universitário.

Os jovens riquinhos que entraram na universidade pós-cotas, estão tendo uma oportunidade que não tiveram na infância e adolescência: conviver com outras classes sociais. Essa convivência de classes, que se dava na rua, no espaço público, nos ônibus, mesmo separados pela barreira da escola particular, aconteceu até outro dia. Até a minha geração, pelo menos.

Os pobres riquinhos de hoje vivem aprisionados em seus prédios gradeados, no transporte para as escolas, nos espaços de lazer. Não sabem o que é andar pelas ruas. Sempre trancafiados, qual prisioneiros, de uma cadeia para outra. Exagero de propósito. Então chegam à universidade. A sobrinha de uma de minhas interlocutoras entraria no curso de Engenharia Química, o segundo mais concorrido no vestibular da Unicamp, depois apenas da Medicina, não tivesse perdido a vaga para um que entrou pela cota. A família se revoltou. Ela? “Tá certo, pai, o direito é dele. Eu vou para São Carlos, onde também passei no vestibular”.

Que mocidade está chegando por aí, hein? Essa do diálogo anterior, teve, ainda no colégio, uma oportunidade semelhante à das cotas. De vez em quando alguns botam as unhas de fora e nos surpreendem positivamente. E ficam os velhos, os de minha geração, apregoando fórmulas abstratas: que piorou a qualidade do ensino nas universidades, que precisam melhorar primeiro as escolas do primeiro e segundo grau. As mudanças podem começar de ponta cabeça, ou de cabeça para baixo, como dizemos com mais graça no nosso linguajar nordestino. Com as cotas, as universidades brasileiras estão cumprindo uma de suas missões mais nobres: contribuir para mudanças na sociedade.

Numa sociedade que chegou a tal ponto de segmentação social (aqui nem estou considerando o diferencial de renda), abrir esse espaço no campus é uma grande aposta a médio prazo. Num primeiro momento, pode causar impactos negativos, como o rebaixamento no ensino, e no aprendizado das disciplinas, na formação profissional. Então eu argumento: e o que esses riquinhos vão aprender saindo de suas gaiolas? Também os professores das áreas de humanas.  Seus “objetos de estudos” estão sentados nas salas de aula, desafiando-os a pensar a cores e ao vivo a sociedade distante de suas pesquisas, incomodando-os em suas certezas.

Resultados inesperados têm aparecido. Será que não estamos precisando de jovens formados para a vida, tanto quanto para a profissão? Conhecendo quem mora e vive em agruras que eles estavam longe de saber, a não ser pela fria imagem da tv e das redes sociais?

A discussão de hoje, entre o café da manhã e a barraca de praia na frente de casa, foi das mais interessantes. A jovem professora/pesquisadora, embora simpática em abstrato à política das cotas, citava exemplos da desconsideração que esses jovens provenientes de bairros populares e escolas públicas têm para com um bem público tão precioso como é a universidade.

Fiquei questionando: mas será que isso tem a ver com as cotas? Não seria produto de um momento de descrença e desalento que atinge a todos, de dentro e de fora da universidade? Se Karl Marx não tivesse escrito mais nada além do Fetiche da Mercadoria,  no primeiro capítulo do Capital, já teria dado uma contribuição enorme às ciências sociais. Ele construiu esse conceito a partir de estudos filosóficos que lastrearam suas teorias. E continua sendo uma ferramenta útil até hoje. Às vezes, em forma de bode expiatório. A culpa dos problemas da velha Europa, por exemplo, seria dos imigrantes. É mais fácil atribuir velhos problemas da universidade às cotas.

O problema não são esses jovens pobres e negros e periféricos na universidade. Eles podem até ser parte da solução.