José Arlindo Soares *

Vladimir Kholuyev: Soldiers of the Revolution (1964).

A revolução Russa de 1917 marcou o início do Século XX, com a introdução , no cenário mundial , de um novo paradigma político- econômico absolutamente oposto ao liberalismo do século XIX, tendo, como uma de suas causas, a eclosão da primeira grande guerra mundial, que assinalou a incapacidade do próprio sistema liberal de resolver suas contradições no interior do próprio mercado. Uma revolução que, contrariando o próprio marxismo clássico, explodiu em país atrasado , e mudou radicalmente, tanto a geopolítica do planeta, como a divisão do pensamento político da humanidade, não apenas nos setenta anos em que o regime se manteve vigente na URSS.

Para a historiadora Sheila Fitzpatrick[1], as revoluções têm duas vidas. A primeira dessas vidas é inseparável do presente, da política contemporânea, dos fatos que realmente existiram. Na segunda vida, elas  deixam  de ser parte do presente e se movem para a história das lendas nacionais e internacionais. Acrescento que a Revolução Soviética virou lenda muito antes mesmo de completar a primeira vida. Ela caminhou sob a proteção da ideologia, enquanto a história real fazia milhões de vítimas em diversas escalas, desde a censura absoluta aos intelectuais, até os fuzilamentos de opositores, chegando aos campos de concentração e trabalhos forçados, além do deslocamento físico de populações inteiras de camponeses que não se adaptaram à coletivização forçada imposta pelo regime.

Na disputa geopolítica, que fazia nascer uma nova potência militar, a segunda vida da Revolução foi-se moldando à antítese do que foi o seu ideário inicial, terminando por confundir-se com a lenda, cuja essência custou a ser percebida por parte dos formadores de opinião no mundo todo. Em virtude da polarização e da luta ideológica com o capitalismo, inúmeros intelectuais do ocidente fecharam os olhos, por exemplo, para as montagens grosseiras dos processos de Moscou.

Todo o arsenal de contradições entre doutrina e realidade não a impediu de manter o discurso da solidariedade internacional aos explorados,  com a promessa de uma vida idílica na fase do comunismo,  ou da ajuda aos povos colonizados, mantendo a polarização permanente com as potências capitalistas. Assim, a luta ideológica criou uma realidade auto-referida, enquanto um processo brutal de acumulação primitiva, através da expropriação quase absoluta do excedente produzido, foi construindo uma burocracia poderosa, o que não deixava de ser um canal de promoção para uma elite operária, e de recompensa para as adesões tardias ao partido.

Em sua fase de consolidação, nos anos 37/40, o terror se esmerou com prisões, fuzilamentos e campos de concentração, que vitimaram milhares de “inimigos fabricados”, entre eles a grande maioria de membros do próprio Comitê Central Bolchevique, à época da Revolução. Praticamente dois terços dos bolcheviques históricos foram presos e fuzilados como “inimigos do povo”, em cenários macabros para desmoralizar os “traidores”, com destaque para as lideranças históricas do Bolchevismo, como Kamenev, Zinoviev e Bukharin, sem falar no exílio e assassinato do Leon Trotski, organizador do Exército Vermelho, que garantiu a manutenção do poder soviético no período da guerra civil.

Muitas análises atribuem a um desvio patológico de Stalin a transformação da ditadura do proletariado em totalitarismo de Estado, quando, de fato, a natureza que o regime assumiu já estava dada na própria doutrina do partido. Estava tanto no “Que Fazer”, “Estado e Revolução” como, na prática política dos primeiros momentos do governo. Prática que foi transformando uma ideologia revolucionária/libertadora (vide “Dez Dias que Abalaram o Mundo”) em uma máquina burocrática de guerra e repressão, aperfeiçoada por mais de três décadas.  O que foi aparentemente paradoxal é que muitos dirigentes, que vieram a ser vítimas, contribuíram para a consolidação do regime totalitário. Na verdade, o arcabouço do Estado Totalitário   que favoreceu a ascensão de Stalin foi estabelecido com os votos de membros proeminentes da futura oposição, inclusive de Trotsky.  O modelo foi-se consolidando com medidas de cerceamento das liberdades civis e políticas, com destaque para a proibição da existência de tendências no próprio partido; com o fechamento de todos os jornais não bolcheviques, inclusive com a proibição de funcionamento de outros partidos de esquerda, como os Mencheviques e Socialistas Revolucionários. Logo após a Revolução, os Bolcheviques simplesmente destituíram a Assembleia Constituinte, onde eles não obtiveram maioria, numa clara demonstração do que iria vigorar a norma do partido único.  Em pouco tempo, os Soviets, (conselhos populares de base) deixaram de ser organismos de massa, com representação de várias tendências, e se tornaram uma mera correia de transmissão do partido bolchevista.

O outro lado do modelo soviético que consolida o mito da Revolução foi a rápida industrialização, como símbolo do caminho para o socialismo.  O primeiro Plano Quinquenal-1927/1932 lançou as bases de uma indústria pesada, que conseguiu um crescimento vertiginoso a curto prazo, não importando que ocorresse pela expropriação quase absoluta do excedente camponês, com a militarização da produção industrial, com os sindicatos submetidos completamente às diretrizes do Partido. Um crescimento industrial que possibilitou o surgimento de uma potência militar, mas sem nunca ter conseguido transportar a tecnologia do setor da indústria de base para o setor de bens de consumo de massa.

A importância e a grandiosidade da Revolução Russa, que vai do “arado à bomba atômica”, têm que ser deslindadas em capítulos e compêndios que não cabem em um artigo.  Com o marco emblemático  de um século de sua eclosão, e depois de todas as suas distorções serem conhecidas, o fenômeno da Revolução Soviética ainda merece a atenção de estudiosos em todo o mundo. De acordo com matéria do caderno  “Aliás”  do “Estado de São Paulo” (edição de 19/03),  apenas no Brasil mais de 50 títulos estão sendo  lançados até novembro deste ano,  com as mais diferentes abordagens , desde  ensaios ortodoxos clássicos  como o Estado e a Revolução de Lenin, até  a Teoria Geral  do Direito e Marxismo de 1924, ainda da fase romântica, antes de seu autor, o jurista Evegni  Pachukanis, ter sido forçado a negar a sua teoria e reconhecer seus erros pela   polícia stalinista, o que não impediu  que fosse preso e fuzilado  a mando de Stalin, em 1937.

*Sociólogo.

[1] Fitzpatrick, Sheila. A Revolução Russa – trad. José Geraldo Couto, edição Brasileira:  São Paulo Editora Todavia, 2017. Edição publicada mediante acordo com a Oxford University Press.