Pela janela, vejo o mar. Lá longe, onde a vista não alcançaria, ao cabo de uma linha reta imaginária que começa na varanda e que recorta a água por pouco mais de 5000 km, fica Luanda, a outrora bucólica capital angolana, hoje Meca da cleptocracia. Se traçasse esta mesma linha um pouco à direita do horizonte, onde agora se vê o cargueiro de casco coral, e a percorresse de avião, pois bem, em dez horas estaria sobre a pequenina Windhoek, na Namíbia, contando com ventos de proa ruins. Tomado o mesmo ângulo à esquerda, na altura da ponta do paredão dos arrecifes do porto, o destino seria a Costa do Marfim, onde a alegre Abidjan está daqui à mesma distância que Porto Alegre, qual seja, 3700 km. Que, a seu turno, se percorrida rumo ao oeste, logo às minhas costas, conduziria a Rio Branco, no Acre. Desta pontinha do continente sul-americano, por fim, se o traçado indicasse o rumo norte radical, chegaríamos aos inuítes da Groenlândia. Se fizéssemos o mesmo corte rumo ao sul, esbarraríamos numa banquisa da Antártida, o continente de gelo. Dentro do Estado, nossa fronteira oeste remete a Petrolina, a 700 km, e esta se debruça sobre a Bahia, na vertente sul. Ao norte, está Araripina, a uma distância similar, que a seu turno namora com outro Juazeiro, este dito do Norte, no Ceará. E assim fechamos uma introdução tosca à geografia das grandes linhas.
Tem mais, porém. Tendo sempre o Recife como ponto de referência, despedimo-nos de Pernambuco por Goiana, na Mata Norte, a 70 km, antes de cruzar a fronteira da Paraíba. Já mais ao sul, Barreiros está a uns 110 km, e, pouco depois dela, pisamos em Alagoas, cuja primeira cidade é Maragogi. Isso equivale a dizer que temos uma faixa costeira relativamente acanhada, conquanto bastante bela, especialmente no trecho ao sul da capital. Por razões denunciadas na certidão de nascimento, amo a região do Agreste – nem Mata nem sertão, portanto -, e dizem que de Quipapá, a 60 km de minha Garanhuns natal, vê-se a mescla de todos microclimas e vegetações do Estado. Assim sendo, ressalvadas as distâncias, o que temos? Praticamente um Portugal inteiro, não mais do que isso tampouco menos e, obviamente, sem sua diversidade climática, já que estamos sujeitos a regimes diferentes. Daí nosso sertão ser tão quente quanto o Algarve no verão e o Agreste ser fresco como a Serra da Estrela nas meias-estações. Frios glaciais estão fora de questão. Já o Recife é cidade arejada, bafejada por brisa regular. Ultimamente, contudo, até vistantes ocasionais têm percebido que algo mudou. Chuvas de vento fustigam os janelões e tivemos registro de 19° numa madrugada dessas. Quem diria?
Se no passado era comum que tivéssemos ressacas violentas, geralmente sob o feitiço da mesma lua cheia que desorbitava a população dos hospícios, e que arrastavam palafitas e aterrorizavam os moradores da beira do mar, parece que as águas se tornaram mais rebeldes. Tanto assim é que não são poucos os veranistas do litoral que, tendo deixado suas casas em perfeita ordem depois da Páscoa – data que marca a inflexão do entusiasmo pernambucano pelas praias e que se prolonga até a primeira quinzena de setembro -, eis que levam um enorme susto quando atendem à convocação do caseiro alarmado para uma visita extemporânea a seus domínios. Lá chegando, constatam que a mureta que defendia a rampa do furor do mar cedeu ao castigo ritmado das ondas e que tudo precisará ser refeito, como se dez anos se tivessem passado desde a última temporada. “É a força da maré”, admitem. Talvez ainda não tenham nascido os que presenciarão a virtual inundação do Recife – mesmo que sejam tantos os bairros com denominação alusiva à água – , mas isso é irrefreável. Fato que será coroado por um tsunami originário nas Canárias, como ocorreu quando do grande terremoto de Lisboa e um vagalhão lambeu Tamandaré, assustando os índios incrédulos.
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Destacar o traço distintivo do panorama nesse ousado arrazoado pluridisciplinar – as pessoas – está, por certo, além das possibilidades acanhadas de minha pena. O que não impede que faça uma tentativa em homenagem a quem chegou tão longe. Do que se trata? Ora, de tentar descrever em lápis rombudo a gente que mora aqui, nesse estado que aprendi a chamar de meu, mas no qual praticamente não vivi depois de adulto embora a ele esteja ligado por laços cada vez mais fortes, tanto quanto se permite uma alma que não é, na essência, vinculada a quase nada nem a ninguém, senão a tudo e a todos, quando nos seus dias bons. Quem são as pessoas que aqui vivem e que pontos – dois ou três – poderia realçar, levando em conta minha visão de outsider e a primazia de ser filho, neto e bisneto de ancestrais que afinal vieram ao mundo aqui, e que daqui pouco saíram, ao que me consta? Pois bem, tentar sempre é uma possibilidade, desde que me obrigue a ser sintético e contido, ademais de muito cuidadoso para não resvalar em clichês ou juízos apressados que possam me valer a ira de uma gente que sabe entesourar as afrontas que se lhe fizeram e ir à forra no momento adequado, para grande surpresa de quem já dava a página por virada.
O primeiro traço a destacar desta gente é pois o do bairrismo saudável. Mesmo os pernambucanos que moram longe há décadas, acreditem, ainda professam esse orgulho quase altivo que os leva a encher os pulmões, levantar o queixo e admitir, como se estivessem pedindo desculpas por soar presunçosos, que sim, nasceram aqui. Então, como um milionário que explica a origem lícita e suada da fortuna, para dissipar quaisquer traços de leviandade, admitirão que os nordestinos, na essência, formam uma grande família, mas que lhes coube nascer num recanto privilegiado da região. Então desfraldarão a bandeira de nossos clubes, louvarão nosso protagonismo em todos os terrenos das artes, elogiarão a diversidade de nossa culinária e se empolgarão ao falar do traço épico de um estado que foi berço de revoluções e movimentos libertários. Assim quem vem de fora entenderá porque Pernambuco é um dos poucos lugares do Brasil onde a população sabe cantar o hino do Estado e o faz com maior devoção do que ao entoar o Hino Nacional em épocas de Copa do Mundo. Mais de um gaúcho já ficou impressionado com este detalhe que, nos pampas, os remete às festividades farroupilhas, momento em que a Nação também fica em segundo plano e cede o proscênio à província.
O segundo traço notável é o nível de politização, palavra que circula como moeda de troca em todas as rodas. Daí talvez o fato de ainda se consagrarem as conceituações de direita e esquerda, pouco importando que até a China as tenha abolido. Mas quem são os chineses para enquadrar nosso povo? Logo aqui são observáveis estas duas vertentes como era padrão durante a Guerra Fria, quadra da História em que Pernambuco foi tão feliz que ali mesmo se fixou. Na acepção geral da população, portanto, esquerda encarna o bem e a direita o mal. Para a chamada canhota, como dizem alguns, o vermelho é a cor do coração, rescende a solidariedade, chama inclusão e conclama amor ao próximo. Quebrar o erário, detonar o futuro e acobertar ilícitos de correligionários integram o ônus da causa. De vez em quando um ou outro sucumbirá às crises de consciência, mas isso passa. À guisa de consolo, cochicharão entre si: “Ora, eles não fazem o mesmo? Por que golpistas podem se locupletar e nós não?” Essa esquerda se acha caudatária de causas variadas: do pavilhão LGTB, dos manguezais, das ciclovias, do uso da maconha e do recurso ao aborto. Fazem-no como se a direita fosse uniformemente heterossexual, predadora, adicta ao automóvel, não se drogasse e não soubesse o que é uma gravidez de risco. Lúcidos ou de porre, amam neologismos tais como precarizar, feminicidio, empoderar, transversalidade e protagonismo. No desespero, louvam também o vandalismo. Longe da turba, são pessoas afáveis. Em grupo, impera o efeito manada e ficam irreconhecíveis.
E a direita? Menos sujeita ao império hormonal, chama-se direita em Pernambuco tudo o que não seja explicitamente de esquerda ou, no delicioso dizer local, progressista. Ver o mundo de forma conservadora, sem endorfina nem seringas de esteroides ideológicos, condena o sujeito à condição de verdugo do povo, essa entidade tão impalpável quanto amada de todos. Contrariamente aos círculos europeus que assacam contra a direita – ou o que chamam de tal – palavras como fascista ou nazista, em Pernambuco a fórmula consagrada é menos óbvia: reacionário. É engraçado, mas funciona. Quem quer ser identificado como vetor de reação ao socialismo? Daí a direita não existir ou pelo menos não se assumir como tal. O “ethos” inclusivo e democrático – palavra amplamente usada – reduz até um torcionário a um querubim. Logo ninguém quer atrair para si a pecha de ser anti-povo e desumano. São raríssimos na história contemporânea os homens públicos que se disseram de direita. Mesmo o maior defensor do rigor fiscal, da repressão ostensiva ao crime organizado, da meritocracia, da qualificação sem adjetivos e das reformas de que depende o País para se manter à tona, ornará sempre o discurso com a concessão fácil à demagogia, insinuando discreto apoio ao populismo, ao parasitismo e ao corporativismo. E mesmo quem se diz de direita, exumará para si um passado de esquerdista na juventude para abrandar o impacto da revelação. E dirá que, no fundo, seria até comunista se a fórmula tivesse funcionado em algum lugar do mundo. Mas que já está curado dessa tentação e só reverá a posição sob o rigor de um argumento técnico, palavra que aqui se contrapõe à noção de político. O político, por definição, não costuma ser técnico. O que abre a comporta da irracionalidade.
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O terceiro e último traço que eu ousaria pincelar é o amor à cultura de forma geral. Artistas plásticos, cineastas, escultores, músicos, poetas, escritores e acadêmicos são louvados num círculo muito mais estendido do que é de regra no restante do país. Ademais, o pernambucano aprecia as credenciais acadêmicas e curriculares de alguém, independentemente do que elas fizeram do portador. Explico-me. Se no Sudeste é de regra avaliar as pessoas pelo que fizeram, ou pelo que podem fazer, em Pernambuco responde-se a essa pergunta apondo os títulos granjeados. “O que você faz?”, perguntaria um paulista. “Tenho um doutorado em física”, dirão. Sim, dirá o primeiro, mas o que você fez dele ou o que ele fez de você. “Ah, por enquanto ainda nada. Estou procurando uma oportunidade. Se não aparecer, vou fazer um pós-doutorado”, responderão. A base precária de oportunidades leva à busca exaustiva de títulos e pode transforma-se em fim em si próprio nas mãos de instituições ladinas. Nesse contexto, a tietagem pela erudição, o cosmopolitismo, o vocabulário esmerado e a prosódia dos articulados fascinarão o conjunto da sociedade. Os intelectuais se empenharão em demonstrar que nenhum assunto lhes é estranho ou indiferente. “Eu já escrevi sobre isso em artigo no jornal”, dirão. É como se ter ideias publicadas em papel de embrulhar peixe equivalesse a lavrá-las no mármore ou granito. Um encontro testemunhado por leigos entre eruditos é evento tão divertido quanto um embate de repentistas inspirados.
Quer você se identifique com esse arrazoado ou não, certo mesmo é que você precisa visitar Pernambuco, se é que nunca se abalou por essas terras gretadas no sertão, e de massapê no litoral. Você ficará apaixonado. O povo, apesar de meio acuado pelo recrudescimento de violência inusitada que campeia no Recife, é no geral muito acolhedor e generoso. Ninguém se contentará em dar uma resposta sintética e monossilábica ao visitante. Não é à-toa que muito estrangeiro chegou aqui para uma visita e nunca mais saiu. E quando digo estrangeiro, isso vale também para brasileiros de todas as regiões. Logo não se deixe impressionar pelas expressões carrancudas com que os homens se defendem daquela timidez de quem ainda não saiu de todo de uma sociedade de feição rural para uma vida urbana. Admitir que você gosta daqui já é meio caminho andado para se fazer adotado pelas pessoas. Pernambucanos são etnocêntricos e tal como gregos, judeus ou armênios, se empenharão em remexer na sua árvore genealógica para achar um vínculo ancestral com a terra. Na falta de um evidente, dirão que você é cristão novo, como boa parte da população branca daqui, e acharão um parente comum na judiaria da Mouraria. As pessoas são sensíveis e com o tempo você aprenderá a lidar com os sutis códigos verbais. Pronto. Eis aqui um bom exemplo. A palavra pronto significa muita coisa e é tonal, como em chinês. O tom é que dará o que significa: se estamos bem, se estamos mal, se chegamos à conclusão ou se assentamos as bases de um bom começo. Bem-vindo.
Fernando,
Ando sem ler você, desde que não tenho mais essa obrigação do tempo de “editora chefe”. Nem ainda cheguei aos teus livros. Não é descaso, você sabe disso, sabe-se bom escritor. É que estou há meses, e não sei quando sairei de um retiro, fora do mundo, das redes sociais, da televisão, quase convento, onde só convivo com livros empoeirados e de páginas desbotadas, leituras seminais que comecei na Serra da Mantiqueira, com a obra de Rosa, e continuo aqui com Machado e outros grandes. Mas não resisti a esse. Afinal, somos conterrâneos desterrados não apenas de Pernambuco, como de Garanhuns.
Farei como você, em teus comentários. Conto três causos:
1. Manuel Correia de Andrade participava de uma Mesa na Unicamp. O coordenador apresentou-o com suas credenciais acadêmicas e como baiano. Ele ouviu impassível. Ao chegar sua vez, encontrou um jeito de referir-se ao tal como “meu colega gaúcho”, o que de imediato rendeu um aparte do paulista que tinha o poder da coordenação. “Ah, desculpe professor. Eu também não sou baiano. Sou pernambucano nascido em Vicência”.
2. Francisco de Oliveira recebeu, por indicação de um atuante vereador do PT, também professor da FAU/USP, o título de cidadão paulistano. A cerimonia ocorreu em um auditório daquela universidade, lotado. Chico sempre se declarou, não tanto pernambucano, como do Recife de João Cabral, Carlos Pena Filho, Mauro Mota … Porém nesse dia, mandou que alguém distribuísse entre os presentes (as cópias foram insuficientes) cópia do hino de Pernambuco. Antes de proferir seu discurso de cidadão da grande metrópole que tão bem acolhe imigrantes de fora e de dentro do país, deu sinal para fazer tocar o hino. Ele levantou-se. Todos da mesa e do auditório fizeram o mesmo. A maioria ouviu calada. Com ele e mais os pernambucanos presentes, cantamos nosso hino com o entusiasmo da Revolução de 1817, levantando os braços ao grito de guerra “Pernambuco, imortal, imortal!”.
3. Entre os laços de meus doze anos no Cebrap, alguns viraram amizade que perdura. Flora é uma delas. Poeta, ciosa, como eu, da língua portuguesa, conversávamos um dia no cafezinho, onde ouvia-se histórias que dariam muitos causos que não vêm ao caso. E Flora me corrigiu quando eu usei a palavra “atanazar”. “Uma paulista não deveria jamais corrigir uma pernambucana na língua portuguesa”. E fomos ao Aurélio. Lá estava: atenazar (ainda ontem eu li assim em Machado); atanazar, corruptela; atazanar, corruptela da corruptela. Ela, e, pelas ondas da Rede Globo, talvez hoje em dia quase toda “torcida do Flamengo”, usam a corruptela da corruptela.
Oi Teresa,
Você demorou a aparecer. Mas quando veio, chegou com tudo. É assim que eu gosto. Acho que você faz muito bem em passar ao largo do imenso lixão das redes sociais. Eu molho os pés ali uma vez ao dia para postar alguma coisa e responder a um eventual comentário interessante. E basta. Com “Será?” é diferente, mas não há como fazer um trabalho sério – nos moldes do que você está se propondo a concluir -, se a todo momento estamos abrindo janelinhas em todas as direções. E se ainda meus textos fossem repousantes e educativos. O pior é que não são nem uma coisa nem outra. Portanto, priorize o importante que nós todos seremos os beneficiários de sua reclusão.
Adorei os casos ilustrativos. O de Manuel Correia de Andrade pode ser adotado de imediato para situações similares. Quantas vezes nesses 35 anos de São Paulo não ouvi de sacripantas que eu era baiano, o que sempre me divertiu. Agora tenho uma saída espirituosa. O de Francisco de Oliveira é mesmo de arrepiar e é difícil imaginar a mesma iniciativa cabendo a nativos de outros estados. Quanto a nosso português, bem, dá margem para muita história. Confesso que quando cheguei a São Paulo de vez, estranhei muito aquela prosódia que traía as origens bem diversas. A língua sofria os açoites dos sírio-ítalo-nipônicos. Muitas vezes cheguei a achar que estavam bêbados. Nada disso, eram só do Brás. Beijo.
Amigo Fernando,
Ultimamente, a família de minha mulher, que é de Campina Grande, não perde uma oportunidade para pegar forte no meu pé, pois – como bom pernambucano – falo “xiando” ( com x, mexmo ).
Tem hora que dá até abuso…mas – apesar dos aperreios -, muito me honra as origens pernambucana e judaica.Levo na esportiva e, já fico experando a próxxima xamada.
Vez por outra, ao comentarmos a crescente violência no Estado de Pernambuco, no Recife – e Brasil – manifesto a idéia, que se mais jovem fosse, iria morar no exterior.
Nessas horas me vem à lembrança o inigualável Tom Jobim, quando afirmava que: “viver no exterior é bom, mas é uma merda.Viver no Brasil é uma merda, mas é bom”.
Merda, por merda, vou ficando por aqui.
Com muito orgulho.
Abraço forte.