O filme, o primeiro longa metragem de Kleber Mendonça, tão precocemente premiado mundo afora, já conta com uma “fortuna crítica” (como o pessoal de literatura tão graciosamente se refere à bibliografia sobre determinada obra literária). Boa parte dessa crítica, para a felicidade de quem pode desfrutar do mundo virtual (ou seja, todos que irão assistir a esse tipo de filme), está na internet. Mesmo assim, ouso escrever sobre o filme, pelo impacto que ele provocou em mim pessoalmente; em mim como observadora e estudiosa dos fenômenos sociais.
Antes de tudo, como pernambucana, fiquei orgulhosa pelo merecido sucesso do filme. Meus amigos paulistanos me telefonaram para me cumprimentar, o que me deixou feliz de duas maneiras: pela conterraneidade com o cineasta e pelo reconhecimento de minha pernambucanidade, que trinta anos de São Paulo só reforçaram.
Vou ao cinema ver o filme com grande expectativa.
Depois dos letreiros iniciais, entra-se numa seqüência de fotografias em branco e preto de um engenho. Um grupo de trabalhadores caminhando para algum destino lembra cenas das Ligas Camponesas, embora não sejam cenas das Ligas Camponesas. O engenho é mostrado apenas do lado dos trabalhadores: sua marcha para alguma luta; crianças igualmente em grupo mostrando um papel que poderia ser um boletim escolar; uma mulher negra usando uma coroa, que poderia ser personagem de alguma festa popular. À última cena do engenho, que mostra apenas a Casa Grande, segue-se um corte brusco para uma cena colorida, barulhenta, nas áreas de recreação de um prédio típico de classe média do Recife.
Aos que não viram o filme ainda, recomenda-se prestar muita atenção nessas silenciosas cenas iniciais, aparentemente contrastantes com o colorido e os barulhos (ou sons, como quer o diretor), que vêm a seguir. Há um elo entre esses quadros portinarianos iniciais e o desdobramento do enredo, que por sua vez é especial, como se fossem quadros que se vão juntando aos poucos. Um som, qual uma batida constante, nasce nas cenas iniciais e percorrerá o filme em vários outros momentos, à maneira de um sutil suspense.
O encadeamento das fotografias iniciais do engenho com o desenrolar do filme está no contraste e não na semelhança. O engenho a cores, tal como aparecerá muitas cenas depois desse intróito, já é, como sói acontecer com a maioria dos que subsistem em Pernambuco, um engenho em decadência. Os locais percorridos pelo neto e a namorada remontam a um tempo pujante, que tinha até cinema para os moradores. É comovente a cena do prédio demolido mantendo ainda o nome, com o solo coberto de mato e os namorados fingindo entrar num cinema de verdade. Lembrança boa de Cinema Paradiso. A única associação entre as cenas desse passeio fortuito do neto no engenho decadente do avô e as cenas iniciais está no banho de cachoeira dos três, avô, neto e namorada do neto, outra tomada belíssima do filme.
O que o cineasta vai costurando na seqüência do filme, em contraste com o preto e branco das cenas iniciais, é que faz o elo, que é sutil, como sutil é o suspense do filme; quase imperceptível, a não ser pelo som, personagem mais importante do filme. A sensibilidade do diretor não é somente a de quem vive nesse Recife que se mostra. É a de quem passou por leitura atenta de Gilberto Freyre.
Não foi por acaso a escolha do Recife e do quarteirão de prédios e casas situado na parte de Boa Viagem conhecida como Setúbal. O filme corre como se fossem dois rios que vão desembocar no mesmo mar. Um deles poderia acontecer em qualquer parte do mundo. Esse é o dos sons urbanos dos dias de hoje. Mais que isso, ou melhor, junto com isso: da vida cotidiana na cidade, dos dramas familiares, das compensações de uma simples dona de casa infeliz na rotina conjugal, das aspirações transferidas para os filhos que precisarão do inglês e do chinês no mundo globalizado.
O outro rio, porém, tem a cara do Capibaribe, assim como o mar é aquele com a placa de “perigo tubarões”, para a qual não faz fé quem tudo pode. O lado do sutil suspense do filme, que só é descoberto na cena final, não poderia acontecer em outro lugar que não o Recife. Esse Recife tão característico de nossas relações raciais cordiais a encobrir uma distância histórica e presente da exploração de classes que nos é própria, expressa principalmente no trabalho doméstico, que é vestígio da escravidão.
São comoventes as cenas no interior da casa do neto João. Ele junta, à herança da Casa Grande, seus sete anos de trabalho braçal na Alemanha (os “brasileiros longe de casa” que recriam o país lá fora a partir de meados dos anos de 1980), onde pôde sentir na pele o que os mauricinhos não conhecem: a exploração capitalista do trabalho. O resultado é uma cordialidade diferenciada, até carinhosa, para além do cuidado e preocupação com os empregados da casa, tantos quantos se fosse na Casa Grande. O entorno dos visinhos é contrastante: para os serviçais, a lei.
Não pude me furtar à lembrança de “O Poderoso Chefão” de Francis Ford Coppola na cena do aniversário de 13 anos da neta. Dizer mais é injusto para quem ainda não viu o filme. Que não percam.
Teresa: agora vi. E posso lhe dizer: concordo inteiramente com você sobre o principal personagem. É o SOM, claro! Toda a trama, no que tem de mais dramático e mais corriqueiro, se desenvolve A PARTIR do som. Duas cenas memoráveis: Bia e o barulho “erótico” da máquina de lavar e os dois irmão subindo à cobertura do coronel, para a cena final — o som da casa de máquina do elevador vai chegado devagar, criando a dramaticidade crescente que a gente acompanha pelas tensão do olhar entre os dois irmãos. Isso sem falar no cachorro irritante da vizinha de Bia, que é quem traduz mais cabalmente o seu drama particular de esposa insatisfeita com o casamento. Quer dizer: ao redor DO SOM se desenvolve o filme, não o contrário. Mais uma sutileza de Kleber Mendonça pra nos lembrar que cinema é ARTE. Melhor: ele gosta de falar que arte é SINTOMA. Sim, alguma coisa de muito ruim acontece no reino dos não-lugares (outra expressão dele muito apropriada) das nossas setúbals, graças, espinheiros e outras “casas fortes”. E precisa tratamento, urgente.
Grandes Teresa e Cláudio: Quase mais nada a dizer, depois de tudo que tão argutamente vcs disseram. Só talvez que também me impressionou muito o filme – que de lambujem tem o fato de ter como diretor de arte meu filho de coração Juliano Dornelles. E que desde que o ví tou martelando um poema, numa tentativa de transmutar para a linguagem poética a belíssima linguagem cinematogrâfica a que tivemos acesso ao vê-lo. Talvez nao o consiga. Mas deixo com vcs o que seriam os versos finais do poema (aliás,boa parte das coisas que escrevo começam pelo fim!):
O som ao redor
do segredo guardado
à sombra do ódio
à sombra do sangue
chorado e vingado.
Grande abraço em cada um dos dois…. Chico de Assis
Parabéns pela Revista e pela iniciativa do site que podemos acompanhar e compartilhar. Adorei os comentários sobre O som ao redor, adorei o filme e o que ele nos mostra da cidade, que não visito há tanto tempo. O que teria a acrescentar é que além de refletir Setubal e ser bastante “pernambucano”, não se limita a Recife. Acho que reflete nossa classe média brasileira atual que precisa ao mesmo tempo consumir (as vizinhas competem pelo tamanho da televisão da outra) e se entender. Ascendeu socialmente mas não mudou basicamente. Realmente o som anuncia o tempo todo a tensão latente no cotidiano e que conduz ao desfecho final que acaba por desvendar o poder que se funda em algo frágil que a vingança consegue atingir.
Abraços
MRosário
Teresa
Parabéns, ao quase clube do bolinha, pela revista!
Ainda não vi o filme mas fiquei emocionada com seu
texto, não só pelo valor literário, mas pelas lembranças
que evocaram do Recife.
Abraços,
Tarcisia
No rápido comentário feito acima falei de um poema em processo, inspirado no filme. Agora dei por terminado o poema (embora, desde Valery, “um poema nunca termina: ele é abandonado). Resolvi complementar o que começara a dizer, compartilhando–o com vcs.
O SOM AO REDOR
O som ao redor
do sexo insone
produzindo o sonífero
e o canino silêncio.
O som ao redor
da desordem urbana
da sanha que se anima
em desumana ordem.
O som ao redor
do cinza
que a todos isola
em ilhas sem sol.
O som ao redor
do riso em cachoeiras
perdido no tempo
cortado no vento.
O som ao redor
do segredo guardado
à sombra do sangue
chorado e vingado.
Ao redor do ódio
ao redor do ócio
ao redor da vingança
ao redor da memória.
O som enfim
ao redor de si.
Senhor do tempo
e de sua história.
Teresa,
fã confessa de cinema, após assistir a um filme (e gostar, é claro) tenho o hábito de retornar a alguns textos que já tenha lido a respeito. Voltei ao seu, que não me parece ser tecnicamente ligada ao cinema (tomara que eu não esteja dando um tremendo fora) e considero que seu texto refletiu sensivelmente o que é o filme, pelo menos o recebeu de um modo parecido com o meu. Passei então o link da revista nos comentários da crítica de um amigo, este ligado profissionalmente ao cinema, além de um grande amante deste, o que nem todo crítico é. Segue então o link do site, caso vc já não tenha lido.
http://imagensamadas.com/2013/03/06/o-som-e-a-furia-ao-redor/#comment-958