Nascido em 1924 e falecido em 2010, Claude Lefort teve uma significativa audiência no Brasil na década de 80 do século que passou – sobretudo na sua primeira metade. Seu livro mais conhecido, A Invenção Democrática, foi aqui traduzido e muito lido nesses anos. Vivia-se o processo de “abertura” política do general Figueiredo e os temas da democracia e dos direitos humanos, nele tratados, favoreceram a acolhida que teve. Eu, que cursara a universidade nos “anos de chumbo” da ditadura militar e tivera alguns colegas presos e torturados, acalentava um tanto vagamente a idéia de escrever uma tese sobre a questão dos direitos humanos no Brasil. Ter vivido sob um regime que fazia da violação de tais direitos um de seus pilares, tinha-nos ensinado, a mim e à minha geração, a valorizar, na prática, o que significava a sua vigência. Havia, entretanto, um problema teórico a resolver.
Havíamos aprendido, com o marxismo, que os “direitos naturais e imprescritíveis” das gloriosas Declarações da Revolução Francesa – que, obviamente, identificávamos com alguma arrogância e escasso preparo sociológico como sendo simplesmente uma “revolução burguesa” – não eram senão os direitos do “homem egoísta […], um indivíduo fechado sobre si mesmo, sobre seu interesse privado e seu capricho privado”, como diz o próprio Marx num texto famoso, “Sobre a Questão Judaica”. A minha idéia era fazer uma análise crítica dessa leitura, considerando-a, à luz da experiência da minha geração, empobrecedora. Sentia-me, entretanto, um tanto tolhido na minha pretensão: quem era eu para criticar Marx? Numa palavra, meus botões eram meus privilegiados interlocutores… Um dia, por causa do seu título, tive minha atenção atraída para um artigo de Claude Lefort, “Direitos do Homem e Política”, que abre seu livro mais conhecido. Nele, Lefort aponta algumas omissões importantes na leitura de Marx. O que mais me chamou a atenção naquele momento, considerando os meus propósitos, foi a crítica ao silêncio de Marx sobre os artigos 7°, 8° e 9° da Declaração, os quais, respectivamente, interditam a prisão arbitrária, instituem o princípio da reserva legal e o da presunção de inocência de todo acusado. O regime militar tinha de tal forma espezinhado esses princípios, que o seu simples enunciado – uma banalidade em tempos normais – tinha naqueles anos adquirido um valor incalculável para nós. Lefort criticava a miopia de Marx em não ver nesses dispositivos “uma aquisição irreversível do pensamento político.”
A leitura desse texto foi para mim um acontecimento no sentido forte do termo. Nesses momentos é reconfortante encontrar um autor importante que diz aquilo que não temos a ousadia de dizer. No contexto de elaboração de um projeto de tese, tinha descoberto meu marco teórico! Mas não foi apenas esse apontamento das omissões de Marx que me mostrou a potencialidade analítica da reflexão lefortiana para o meu projeto. Seu texto, afinal, não se resumia a isso. A crítica dos vieses na leitura marxista servia na verdade de mote para Lefort retomar um dos tópicos mais recorrentes na sua obra: o “desintrincamento” – para usar um termo bem seu – que se opera no fenômeno democrático entre a lei e o poder. Como diz ele, “o poder se encontra confinado a limites e o direito plenamente reconhecido em exterioridade ao poder.” Essa visão pareceu-me adequada para “enquadrar” o objeto empírico que queria circunscrever, a saber: o aparecimento, no Brasil, de um movimento de defesa dos direitos humanos opondo-se à ditadura militar e à sua ordem legal em nome de um direito a ela não submisso. Mas o que haveria de novo no que dizia Lefort? Até aí, nada que não pudesse ser subscrito por um jurista convencionalmente liberal. Qual, então, a novidade? Ocorre que o texto que tinha em mãos não se esgotava aí. Nas reflexões que em seguida fazia sobre o significado político de uma sociedade que acolhe os direitos do homem como seu fundamento, Lefort revelava-se um autor nada convencional, e sua visão da democracia, desconcertante para o senso comum.
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Luciano
Como co-editor da revista Será quero dizer que este seu ensaio sobre Claude Lefort concede fundamentos teóricos para a nossa orientação editorial que considera a dúvida, controvérsia, em outras palavras, o conflito de ideias a base do conhecimento. E se, como você diz, a democracia se nutre do conflito e das imperfeiçoes, o conhecimento, sempre inacabado, se alimenta das dúvidas e dos conflitos de opiniao e interpretação do mundo. Valeu! Sergio
Gostei muito de suas reflexões. no mesmo sentido, creio que uma leitura mais metodológica que política da obra de Marx permite compreender a dinâmica social através de suas contradições históricas e dos respectivos processos de mediação nos planos político, institucional, comunitário, individual consciente e inconsciente (agregando-se a visão “dialética” de Freud). Nesta perspectiva, de fato, não existem soluções porque a mediação de cada contradição gera outras num encadeamento dinâmico na infinita complexidades dos sistemas humano e social., do que nos fala Pierre Bourdieu.
Parabéns Luciano pelo seu texto instigante. Seu mérito, além dos argumentos sobre a concepção de democracia em Lefort, é o de aliar sua experiência pessoal e intelectual, com um capítulo da história de nosso país, em um período crucial para se pensar o sentido da democracia.
Se olharmos um pouco mais atentamente para a crítica que os intelectuais franceses fazem a um certo marxismo mumificado e etapista (à la Roger Garaudy, antes que este se convertesse ao islamismo!), vemos algumas vertentes que ora retomam criativamente Marx, mesmo criticando-o (Castoriadis e Lefort), Sartre que sem deixar suas matrizes fenomenológicas (e portanto “humanistas” no sentido da consciência e do indivíduo), Althusser (que faz uma exegese competente de um marxismo reinventado, mas muitas vezes ventríloquo); os novos filósofos (arautos de um futuro neolibaral e de sua joie de vivre); os “pós-marxistas” (como é difícil catalogar!)e pós-libertários (do tipo Jacques Rancière e Alain Badiou). Aliás a visão de sujeito e de política nestes dois últimos (Rancière e Badiou) se aproximam bastante da visão de democracia (algo inalcançável, mas que tende a se realizar enquanto o conflito estiver posto, ou justamente por causa dele).
Mas é claro que esta minha percepção é um tanto gaulesa, mas como diria Marx, como seria possível (no seu tempo, pelo menos) falar de política sem se referir ao laboratório da luta de classes em França!
Seria interessante se pudéssemos nos aproximar mais ao que Alain Rouquié vai chamar de “Extremo Ocidente”,isto é América Latina. Aqui, nossa escola de democracia está ainda em busca de referências autóctones. Acabamos sempre nos referindo à história dos “outros”, isto é, daqueles que nos impuseram as ideias desde o norte (aquém e além oceano)esperando que repetíssemos suas próprias experiências.
Finalmente, apenas uma pequena observação sobre o final de seu texto, quando você se refere aos “efeitos inesperados” da ação social, mais do que da democracia. De fato, os eventos aos quais você se refere são muito mais amplos do que a democracia se pensarmos que esta se remete também aos mecanismos de participação política exta-intra-instituições. O que aliás nos obrigaria a trazê-la igualmente para o domínio do político, no sentido de entendê-lo como espaço (ou campo) em que se dá o enfrentamento, mas do qual também podem derivar-se resultados visíveis e possibilidades concretas de apropriação de novos sentidos para os contendores.
Mais uma vez, parabéns por esta oportunidade de poder estar refletindo à luz de suas próprias reflexões.
Um abraço
Dimas Floriani