Luciano Oliveira

 A liberdade guiando o povo – E. Delacroix (1798 – 1863)

A liberdade guiando o povo – E. Delacroix (1798 – 1863)

Nascido em 1924 e falecido em 2010, Claude Lefort teve uma significativa audiência no Brasil na década de 80 do século que passou – sobretudo na sua primeira metade. Seu livro mais conhecido, A Invenção Democrática, foi aqui traduzido e muito lido nesses anos. Vivia-se o processo de “abertura” política do general Figueiredo e os temas da democracia e dos direitos humanos, nele tratados, favoreceram a acolhida que teve. Eu, que cursara a universidade nos “anos de chumbo” da ditadura militar e tivera alguns colegas presos e torturados, acalentava um tanto vagamente a idéia de escrever uma tese sobre a questão dos direitos humanos no Brasil. Ter vivido sob um regime que fazia da violação de tais direitos um de seus pilares, tinha-nos ensinado, a mim e à minha geração, a valorizar, na prática, o que significava a sua vigência. Havia, entretanto, um problema teórico a resolver.

Havíamos aprendido, com o marxismo, que os “direitos naturais e imprescritíveis” das gloriosas Declarações da Revolução Francesa – que, obviamente, identificávamos com alguma arrogância e escasso preparo sociológico como sendo simplesmente uma “revolução burguesa” – não eram senão os direitos do “homem egoísta […], um indivíduo fechado sobre si mesmo, sobre seu interesse privado e seu capricho privado”, como diz o próprio Marx num texto famoso, “Sobre a Questão Judaica”. A minha idéia era fazer uma análise crítica dessa leitura, considerando-a, à luz da experiência da minha geração, empobrecedora. Sentia-me, entretanto, um tanto tolhido na minha pretensão: quem era eu para criticar Marx? Numa palavra, meus botões eram meus privilegiados interlocutores… Um dia, por causa do seu título, tive minha atenção atraída para um artigo de Claude Lefort, “Direitos do Homem e Política”, que abre seu livro mais conhecido. Nele, Lefort aponta algumas omissões importantes na leitura de Marx. O que mais me chamou a atenção naquele momento, considerando os meus propósitos, foi a crítica ao silêncio de Marx sobre os artigos 7°, 8° e 9° da Declaração, os quais, respectivamente, interditam a prisão arbitrária, instituem o princípio da reserva legal e o da presunção de inocência de todo acusado. O regime militar tinha de tal forma espezinhado esses princípios, que o seu simples enunciado – uma banalidade em tempos normais – tinha naqueles anos adquirido um valor incalculável para nós. Lefort criticava a miopia de Marx em não ver nesses dispositivos “uma aquisição irreversível do pensamento político.”

A leitura desse texto foi para mim um acontecimento no sentido forte do termo. Nesses momentos é reconfortante encontrar um autor importante que diz aquilo que não temos a ousadia de dizer. No contexto de elaboração de um projeto de tese, tinha descoberto meu marco teórico! Mas não foi apenas esse apontamento das omissões de Marx que me mostrou a potencialidade analítica da reflexão lefortiana para o meu projeto. Seu texto, afinal, não se resumia a isso. A crítica dos vieses na leitura marxista servia na verdade de mote para Lefort retomar um dos tópicos mais recorrentes na sua obra: o “desintrincamento” – para usar um termo bem seu – que se opera no fenômeno democrático entre a lei e o poder. Como diz ele, “o poder se encontra confinado a limites e o direito plenamente reconhecido em exterioridade ao poder.” Essa visão pareceu-me adequada para “enquadrar” o objeto empírico que queria circunscrever, a saber: o aparecimento, no Brasil, de um movimento de defesa dos direitos humanos opondo-se à ditadura militar e à sua ordem legal em nome de um direito a ela não submisso. Mas o que haveria de novo no que dizia Lefort? Até aí, nada que não pudesse ser subscrito por um jurista convencionalmente liberal. Qual, então, a novidade? Ocorre que o texto que tinha em mãos não se esgotava aí. Nas reflexões que em seguida fazia sobre o significado político de uma sociedade que acolhe os direitos do homem como seu fundamento, Lefort revelava-se um autor nada convencional, e sua visão da democracia, desconcertante para o senso comum.

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