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Repressão militar contra manisfetantes em defesa da democracia - 1964

Repressão militar contra manisfetantes em defesa da democracia – 1964

A imagem que mais me ocorre ao lembrar esse dia é a minha saída do prédio da Agência Nacional (o mesmo dos Correios, na Av. Guararapes), onde trabalhava como repórter-auxiliar. Saía com meu irmão mais velho, Antonio Avertano, diretor da Agência e também metido em subversão à época, além de mais alguns velhos comunistas que lá trabalhavam. As ruas já respiravam o clima de golpe.

O Palácio das Princesas, cercado por tropas do Exército, contrariava a previsão do dia  anterior, feita pelo próprio governador Miguel Arraes, em rápida entrevista que com ele tivemos (eu e meu irmão), no fim da noite de 31 de março. Ele acreditava (ou, para nos tranquilizar, nos deu a entender que acreditava) que o golpe seria debelado. O general Amauri Kruel, comandante do II Exército, aderiria ao Presidente João Goulart,  e o general Justino Alves Bastos, do IV Exército, emprestar–lhe-ia  apoio aqui no Estado.

Traído em sua expectativa – no transcurso de uma madrugada plena de traições – Arraes se viu cercado pela manhã e intimado a renunciar ou aderir. O governador dos pernambucanos assumiu a digna posição que o projetaria para a História e o transformaria num dos líderes políticos mais admirados de Pernambuco. Não renunciaria, nem muito menos aderiria aos golpistas. Seu mandato lhe havia sido outorgado pelo povo. E só ao povo seria entregue. Saiu preso, escoltado por forças militares, levado ao 14º Regimento de Infantaria e posteriormente desterrado  para a Ilha de Fernando Noronha, em cujo presídio passaria boa parte do seu tempo de prisão.

Eu estava meio assustado com tudo. Tinha então 17 anos. Minha  militância – embora já engajada à juventude do Partido Comunista Brasileiro (PCB) – resumia–se a infindáveis discussões na esquina da Sertã (famosa cafeteria da época, na esquina da R.da Palma c/Av. Guararapes), a atuar no Clube Literário Monteiro Lobato (que havia fundado, ao lado de outros companheiros e que denominávamos “QG do estudante nacionalista”) e a acompanhar, com enorme entusiasmo, os avanços sociais que um governo efetivamente democrático realizava. Poucos dias antes, Luis Carlos Prestes, então secretário–geral do PCB, havia dito pela imprensa não existir nenhuma condição para um golpe de direita, que as conquistas sociais eram irreversíveis e que nada deteria o avanço do povo. Era natural que estivesse perplexo, diante do que começava a ver.

Abandonei os companheiros de trabalho numa das margens da avenida e me dirigi à ponte Duarte Coelho, onde já despontavam os primeiros cordões da passeata de estudantes, bancários e alguns poucos trabalhadores de outras categorias, que se dirigiam ao Palácio, em solidariedade ao governador sitiado. Naturalmente, me incorporei a ela. Quando chegamos na esquina da Guararapes com Dantas Barreto, a um quarteirão do Palácio, as tropas militares se movimentaram em nossa direção. Pusemo-nos todos a cantar o Hino Nacional e alguns a desenrolar as bandeiras nacionais que conduziam, na  esperança de que o gesto paralisasse as tropas, como ocorrera em escaramuças anteriores.

Várias rajadas de metralhadora e fuzil foram a resposta que tivemos aos nossos gritos de “fascistas” e de “não passarão”. Recuei correndo até a Igreja de Santo Antônio, quando soube que o corpo visto pouco antes, em meio a uma poça de sangue,  era de Jonas Albuquerque, menino poeta de 16 anos, meu colega no Colégio Estadual de Pernambuco. Outros tiros, soube depois, atingiram Ivan Aguiar, estudante de Engenharia, filho de notória família comunista em nosso Estado. Meus pais  moravam à época em bairro central. Foi lá que atordoada e apressadamente cheguei,  para arrumar uma pequena mochila, ouvir o choro de minha mãe e as eternas admoestações do meu pai, “quem não obedece ao pai, termina tendo que obedecer à polícia”.

Deixei os dois em pânico e saí meio sem rumo. Procurava alguma orientação, um pouquinho mais ajuizada que a recebida de  um vulto agalegado, que conhecia das assembléias estudantis, logo  depois  de sair de  casa: “agora é pegar em armas, companheiro; faca, revólver, facão e se juntar no  campo ao velho Griga!”. Possivelmente naquele mesmo momento,  o velho Griga, o histórico líder comunista Gregório Bezerra, estava sendo preso no município de Cortês (Zona da Mata pernambucana).  Depois de achincalhado e torturado  por verdugos como os coronéis Hélio Ibiapina e Antonio Bandeira, em pleno QG do IV Exército,  ele foi entregue à sanha assassina do coronel Darcy Ursmar Villocq Vianna – o coronel Villocq, e conduzido ao Quartel de Motomecanização, no bairro de Casa Forte. É  o próprio velho Griga que conta:

“…puseram–me numa cadeira e três sargentos seguraram–me por trás, enquanto Villocq, com um alicate, ia arrancando meus cabelos. Logo depois, puseram–me de pé e obrigaram–me a pisar numa poça de ácido de bateria. Em poucos segundos, estava com a sola dos pés em carne viva…” (Memórias, Boitempo Editorial: São Paulo – 2011, p. 537)

Nessas condições, Gregório foi depois arrastado pelas ruas de Casa Forte, uma corda amarrada ao pescoço, para gáudio dos torturadores recém-vitoriosos e escândalo das tradicionais famílias do bairro. Elas começavam a descobrir o tipo de sistema que elas mesmas haviam ajudado a engendrar nas famosas passeatas com Deus, pela Família e pela Liberdade, do pré-64.

Mesmo sem ter, àquela altura, conhecimento de nenhum desses fatos, diante da proposta e do tom meio desesperado do companheiro, eu me limitei a rir (espécie de reação nervosa que me ocorre quando não sei bem o que fazer) e segui meu caminho ou descaminho. A noite se abateu literalmente, não só sobre o Recife. A mentira – que brincalhonamente atribuíamos à passagem do 1º de abril – estendeu seu manto sobre os dias subsequentes. E duraria 21 anos!

* Ex–preso político de Pernambuco e Jornalista.

 

Este texto é parte da Série 1964 – Memórias de Abril, um resgate coletivo e fragmentado da história.

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